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mais ao longe podia-se ouvir o som de crianças brincando e, ainda mais ao longe que a aparente fonte deste som, podia-se ver, na primeira escuridão da noite, o contorno de uma pequena cidade.
A cidade era formada por prédios baixos, feitos de pedra branca. Recortava o horizonte de forma suave.
O sol havia se posto quase totalmente.
Surgida do nada, uma música começou a tocar. Slartibartfast apertou um botão e ela parou. Uma voz disse:
― Isso... ― Slartibartfast apertou outro botão e a voz também parou.
― Eu mesmo vou lhes contar essa parte ― disse, suavemente. O lugar era pacífico. Arthur sentia-se feliz. Até mesmo Ford parecia alegre. Caminharam um pouco em direção à
cidade. A Ilusão Informacional de grama era agradável e fofa sob seus pés, e a Ilusão Informacional de flores tinha uma fragrância doce.
Apenas Slartibartfast parecia estar apreensivo e aborrecido.
Ele parou e olhou para cima.
Arthur pensou subitamente que, como a parte onde estavam vinha no final, por assim dizer, ou, mais exatamente, no início de todo o horror que haviam acabado de presenciar de forma borrada, provavelmente algo profundamente desagradável estava para acontecer. Ficou transtornado ao pensar que algo de profundamente desagradável pudesse acontecer em um lugar tão idílico quanto aquele. Também olhou para cima. Não havia nada no céu.
― Eles não vão atacar aqui, vão? ― disse. Sabia que estava apenas andando dentro de uma gravação, mas ainda assim ficou tenso.
― Nada vai atacar aqui ― disse Slartibartfast com uma voz inesperadamente trêmula de emoção. ― Foi aqui que tudo começou. Este é o lugar em si. O planeta Krikkit. Olhou para o céu acima deles.
O céu, de um horizonte ao outro, de leste a oeste, de norte a sul, era total e completamente negro.
Capítulo 11
Estompe, estompe.
R-r-r-r-rrr.
― É um prazer servi-lo.
― Cale-se.
― Obrigado.
Estompe estompe estompe estompe estompe.
R-r-r-r-rrr.
― Obrigado por tornar uma simples porta muito feliz.
― Espero que seus diodos enferrujem.
― Obrigado. Tenha um bom dia.
― Estompe estompe estompe estompe.
R-r-r-r-rrr.
― É um prazer abrir para você...
― Vá se zarcarl
― ...e uma grande satisfação fechar de novo, com a consciência de um trabalho
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bem-feito.
― Já disse para se zarcar!
― Obrigado por ouvir esta mensagem.
Estompe estompe estompe estompe.
― Uop.
Zaphod parou de estompear. Estava estompeando pela Coração de Ouro há dias e, até aquele momento, nenhuma porta tinha dito "uop" para ele. Na verdade, estava bem certo de que nenhuma porta teria dito "uop" agora. Portas, em geral não dizem algo assim. É
muito conciso. Além disso, não havia portas suficientes.
Soou como se 100 mil pessoas tivessem dito "uop", o que o deixava intrigado, já
que era a única pessoa na nave.
Estava escuro. A maioria dos sistemas não-essenciais da nave estavam desligados. Ela estava à deriva em uma área remota da Galáxia, no mais negro nanquim do espaço. Então como 100 mil pessoas iriam até lá para dizer um "uop" totalmente inesperado?
Olhou em volta, para um lado e para o outro do corredor. Tudo estava envolto em trevas. Havia apenas os contornos rosados e fracamente iluminados das portas, que brilhavam no escuro e pulsavam sempre que elas falavam, apesar de tudo que ela já tinha tentado para impedi-las.
As luzes estavam apagadas para evitar que suas cabeças pudessem olhar uma para a outra, porque nenhuma delas era uma visão particularmente atraente no momento, como já
não eram desde que Zaphod cometera o erro de examinar sua alma. Aquilo tinha sido um grande erro. Era tarde da noite, é claro. Tinha sido um dia difícil, é claro.
Uma música suave estava tocando no som da nave, é claro.
Ele estava, é claro, ligeiramente bêbado.
Em outras palavras, todas as condições habituais que levam a um surto de exame da alma estavam presentes. Ainda assim, claramente havia sido um erro. Andando agora, silencioso e solitário, no corredor sombrio, lembrou-se daquele momento e sentiu um frio na espinha. Uma de suas cabeças olhou para um lado, a outra para o outro, e cada qual decidiu que o lado oposto era o caminho a seguir. Estava prestando atenção, mas não havia som algum.
Só tinha havido aquele "uop".
Parecia uma viagem terrivelmente longa para trazer um numero terrivelmente grande de pessoas para dizer uma única palavra. Ficou nervoso e começou a caminhar em direção à ponte.
Ao menos lá se sentiria no controle da situação. Parou de novo. Da forma como se sentia agora, não achava que fosse uma pessoa muito adequada para estar no controle de nada. Lembrando agora daquele momento, o primeiro choque tinha sido a descoberta de que ele realmente tinha uma alma.
De certa forma sempre presumira que tinha uma, já que parecia ter todas as outras coisas, e na verdade tinha até duas de algumas coisas, mas encontrar de fato aquela coisa escondida lá dentro dele havia sido um grande choque.
E ter descoberto, em seguida (este foi o segundo choque), que sua alma não era a coisa fantástica que acreditava ter o direito natural de esperar, sendo um homem de sua posição, o havia chocado novamente.
Então havia pensado a respeito de qual era exatamente sua posição e o novo choque quase fez com que derrubasse seu drinque. Virou o copo rapidamente antes que algo sério pudesse acontecer à bebida. Em seguida tomou um outro drinque, para seguir o primeiro e verificar se estava tudo bem.
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― Liberdade ― disse em voz alta.
Naquele momento, Trillian apareceu na cabine de comando e disse várias coisas entusiásticas a respeito da liberdade.
― Não posso lidar com isso ― respondeu ele, soturno, e enviou um terceiro drinque para averiguar por que o segundo ainda não havia enviado um relatório sobre a situação do Primeiro. Olhou inseguro para as duas Trillians e concluiu que preferia a que estava à direita.
Jogou um drinque garganta abaixo pela outra garganta, penando que este iria encontrar o anterior na junção, onde ambos uniriam forças e fariam com que o segundo tomasse jeito.
Então os três partiriam em busca do primeiro, teriam uma boa conversa com ele e talvez cantassem um pouco também.
Estava em dúvida se o quarto drinque tinha entendido tudo aquilo, portanto mandou descer um quinto para detalhar o plano e um sexto para dar apoio moral.
― Você está bebendo muito ― disse Trillian.
Suas cabeças colidiram enquanto tentavam reunir, em uma única pessoa, as quatro Trillians que estavam vendo. Acabou desistindo e olhou para a tela de navegação. Ficou espantado ao ver que havia um número fenomenal de estrelas.
― Diversão e aventura e coisas exóticas ― murmurou.
― Olha ― disse ela com uma voz simpática, sentando-se ao lado dele ―, é
compreensível que você se sinta um pouco vazio e desnorteado por algum tempo. Espantou-se com ela. Nunca antes havia visto alguém se sentar em seu próprio colo.
― Uau ― disse. E tomou outro drinque.
― Você completou a missão que te envolveu durante quatro anos.
― Ela não me envolveu. Eu procurei evitar ficar envolvido nela.
― Mesmo assim você a concluiu.
Ele resmungou. Aparentemente estavam dando uma grande festa em seu estômago.
― Acho que isso acabou comigo ― disse. ― Aqui estou, Zaphod Beeblebrox, e posso ir a qualquer lugar, posso fazer qualquer coisa. Tenho a melhor nave de todo o espaço, uma garota com quem as coisas parecem estar indo bem...