― Aposto que você não esperava me encontrar novamente ― disse o monstro, e Arthur achou que era uma observação bem estranha da parte do monstro, uma vez que jamais havia encontrado a criatura antes. Tinha certeza de que nunca havia encontrado a criatura antes pelo simples fato de que conseguia dormir à noite. Aquilo era... aquilo era... aquilo era...
Arthur piscou e olhou novamente. O monstro estava absolutamente imóvel e, pensando bem, tinha algo familiar.
Uma terrível e fria calma apoderou-se dele quando compreendeu que estava olhando para um holograma de uma mosca com quase dois metros de altura. Perguntou-se por que alguém estaria interessado em mostrar-lhe um holograma de uma mosca com quase dois metros de altura naquele momento.
Perguntou-se de quem era aquela voz.
Era um holograma horrivelmente realístico.
Ele desapareceu.
― Ou talvez você se lembre melhor de mim ― disse a voz subitamente, e era uma voz profunda, gutural e malevolente que soava como alcatrão derretido escorrendo de um barril idéias malignas em sua mente ― como o coelho.
Com um súbito ping, surgiu um coelho naquele labirinto curo, um enorme, monstruosa e odiosamente macio e adorável coelho. Novamente era apenas uma imagem, mas cada um dos macios e adoráveis pêlos parecia uma coisa única e real crescendo em sua pele macia e adorável. Arthur surpreendeu-se ao ver seu próprio reflexo naqueles suaves e
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adoráveis imensos olhos castanhos que não piscavam.
― Nascido na escuridão ― rosnou a voz ―, criado na escuridão. Uma manhã, pela primeira vez coloquei minha cabeça para fora naquele reluzente mundo novo e ela foi partida ao meio por algo que se parecia muito com um suspeito instrumento primitivo feito de sílex. Feito por você, Arthur Dent, e manejado por você. De forma bastante brutal, pelo que me lembro. Você transformou minha pele em uma sacola na qual guardava pedras interessantes. Fiquei sabendo disso por acaso, já que, em minha vida seguinte, retornei como uma mosca e você me matou. De novo. Só que desta vez você me matou com a bolsa que havia feito com minha pele anterior. Arthur Dent, você não apenas é um homem cruel e desalmado, como também é absurdamente sem tato.
A voz fez uma pausa enquanto Arthur olhava em volta, abestalhado.
― Vejo que você perdeu a bolsa ― disse a voz. ― Provavelmente se cansou dela, não é? Arthur sacudiu a cabeça, desesperado. Queria explicar que, na verdade, adorava aquela bolsa e cuidava dela com muito cuidado e a levava com ele para onde quer que fosse, mas, por algum motivo, sempre que viajava para algum lugar acabava inexplicavelmente com uma outra sacola e que, muito peculiarmente, naquele exato momento havia notado pela primeira a sacola que estava carregando agora parecia ser feita de uma imitação fajuta de pele de leopardo que não era a mesma que estava com ele pouco antes de ter chegado naquele qualquer lugar que fosse, e que aquela não era uma sacola que, pessoalmente, ele teria escolhido, e só Deus sabe o que poderia ter lá dentro ― posto que não era dele ―, e que gostaria muito de ter novamente sua sacola original, exceto, claro, pelo fato de lamentar profundamente ter removido tão peremptoriamente a dita sacola, ou melhor dizendo, ter removido as partes que a constituíam, ou seja, a pele de coelho, de seu dono anterior, seja dito o coelho ao qual tinha, naquele instante a honra de tentar em vão dirigir-se. Na prática, tudo que conseguiu dizer foi:
― Eh...
― Veja agora a salamandra na qual você pisou.
E lá estava, no mesmo corredor que Arthur, uma gigantesca salamandra verde escamada. Arthur se virou, gritou, pulou para trás e viu-se de pé no meio do coelho. Gritou de novo, mas não achou outro lugar para onde pular.
― Essa também era eu ― prosseguiu a voz, em tom grave e ameaçador ―, como se você não soubesse...
― Saber? ― disse Arthur, espantado. ― Saber?
― A coisa mais interessante sobre a reencarnação ― rosnou a voz ― é que a maioria das pessoas, a maioria dos espíritos não percebem o que está acontecendo com eles. Fez uma pausa dramática. Na opinião de Arthur, já havia drama suficiente naquilo tudo.
― Eu tinha consciência ― sussurrou a voz ―, ou melhor, eu me tornei consciente. Lentamente. Gradualmente.
Ele, quem quer que fosse, parou novamente e tomou fôlego:
― Não podia evitar, não é mesmo? ― berrou ― A mesma coisa continuava acontecendo, de novo, de novo, de novo! Em cada vida que já vivi fui morto por Arthur Dent. Qualquer mundo, qualquer corpo, qualquer tempo, assim que estou me acostumando lá vem Arthur Dent e, paft!, me mata. Difícil não notar, não é?
Meio que um lembrete. Meio que um marcador. Meio que uma maldita pista!
"Engraçado", dizia meu espírito para si mesmo enquanto ele voava de volta para o vazio da não-existência após outra aventura na terra dos vivos, terminada por Dent,
"...engraçado que aquele homem que acabou de me atropelar, enquanto eu saltitava através da estrada em direção a meu lago favorito, me pareceu familiar..." Aos poucos então,
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consegui juntar as peças, Dent, seu maníaco multiassassino de mim. Os ecos da voz reverberavam para cima e para baixo dos corredores. Arthur permaneceu silencioso e frio, sacudindo a cabeça, sem acreditar.
― Eis o momento, Dent ― grasnou a voz, agora atingindo um tom de ódio febril
―, eis o momento em que eu finalmente soube!
A coisa que subitamente se abriu diante de Arthur era indescritivelmente horrenda, fazendo-o engolir em seco e gorgolejar de terror, mas vamos fazer uma tentativa de descrever quão horrenda a coisa era. Era uma enorme e pulsante caverna úmida com uma imensa e gosmenta criatura similar a uma baleia rolando dentro dela e escorregando sobre monstruosas lápides brancas. No alto da caverna havia um vasto promontório no qual se podia ver os recessos escuros de outras duas terríveis cavernas, as quais... Arthur Dent percebeu subitamente que estava olhando para sua própria boca, quando sua atenção deveria estar concentrada na ostra viva que estava sendo irremediavelmente enfiada dentro dela.
Cambaleou para trás gritando e desviou os olhos.
Quando abriu novamente os olhos viu que a terrível aparição tinha sumido. O
corredor estava escuro e, por alguns instantes, silencioso. Estava sozinho com seus pensamentos. Eram pensamentos extremamente desagradáveis e ele preferia ter um acompanhante por perto.
O próximo barulho que ouviu foi o tremor grave e maciço de uma grande parte da parede se abrindo para o lado, revelando, por enquanto, apenas uma negra escuridão atrás dela. Arthur olhou para dentro da mesma forma que um rato olha para dentro de um canil escuro. E a voz dirigiu-se a ele novamente.
― Diga-me que foi apenas coincidência, Dent. Eu o desafio a dizer que foi apenas coincidência.
― Foi uma coincidência ― disse Arthur, rapidamente.
― Não foi não! ― retrucou a voz com um berro.
― Foi ― disse Arthur ―, foi sim...
― Se foi apenas coincidência, então meu nome ― ribombou a voz ― não é
Agrajag.
― Devo presumir ― disse Arthur ― que você afirma que era esse o seu nome.
― Sim ― retrucou Agrajag, como se tivesse completado um brilhante silogismo.
― Bem, lamento dizer que ainda assim foi apenas coincidência ― disse Arthur.
― Venha até aqui e repita isto! ― urrou a voz, novamente em fúria. Arthur entrou lá e disse que era uma coincidência, ou melhor, quase conseguiu dizer que era uma coincidência. Sua língua meio que perdeu o passo perto do final da última palavra porque as luzes se acenderam e ele pôde ver onde havia entrado. Era uma Catedral do Ódio.