― Afinal ― disse Ford ― só se morre uma vez.
O velho ignorou o último comentário e olhou intensamente para o campo, com olhos que pareciam espelhar sentimentos sem qualquer relação com o que estava acontecendo lá. O que estava acontecendo lá era que a multidão se reunira num grande círculo em torno do centro do campo. O que Slartibartfast estava vendo era algo que só ele sabia.
Ford estava cantarolando algo. Era apenas uma nota, repetida em intervalos regulares. Ele queria que alguém perguntasse o que estava cantarolando, mas ninguém perguntou. Se alguém tivesse perguntado, teria respondido que estava repetindo várias vezes o início de uma canção de Noel Coward chamada Mad About the Boy (Louco pelo garoto]. Alguém diria, então, que estava cantando apenas uma nota, e ele responderia que, por motivos que lhe pareciam óbvios, estava omitindo a parte do "about the boy". Ficou muito chateado, já que ninguém lhe perguntou nada disso.
― É só que ― acabou dizendo, irritado ―, se não sairmos logo daqui, podemos ficar presos naquela confusão de novo. E nada me deprime mais do que ver um planeta sendo destruído. Com a exceção, talvez, de estar no planeta quando isso acontece. Ou ―
acrescentou, em voz baixa ― assistir a partidas de críquete.
― Paciência ― repetiu Slartibartfast. ― Grandes coisas irão acontecer.
― Foi exatamente o que você disse da última vez ― disse Arthur.
― E aconteceram coisas ― disse Slartibartfast.
― É verdade ― admitiu Arthur.
Ainda assim, aparentemente tudo o que estava acontecendo era uma cerimônia. Tinha sido especialmente preparada para a TV, em detrimento dos espectadores, e tudo o que podiam perceber de onde estavam era o que ouviam em um rádio próximo. Ford estava agressivamente desinteressado. Ele se aborreceu quando explicaram que as Cinzas seriam entregues ao capitão do time da Inglaterra, se enfureceu quando disseram que as Cinzas estavam sendo entregues porque era a enésima vez que a Inglaterra ganhava, rosnou de irritação ao saber que eram os restos de uma trave de críquete e quando, além disso tudo, lhe Pediram para lidar com o fato de que a trave em questão havia sido queimada em Melbourne, na Austrália, em 1882, para simbolizar a "morte do críquete inglês", virou-se para Slartibartfast, inspirou profundamente, mas não pôde dizer nada porque o velho não estava mais lá. Ele seguia rapidamente em direção ao centro do campo com uma forte determinação em seu andar, e seus cabelos, sua barba e sua túnica esvoaçavam atrás dele, o que fazia com que se parecesse muito com Moisés, não fosse pelo
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fato de que o Monte Sinai em geral é representado como um imponente monte fumegante e não como um gramado bem aparado.
― Ele disse para nos encontrarmos na nave ― disse Arthur.
― Por Zárquon, o que diabos este velho tolo está fazendo? ― gritou Ford.
― Está indo nos encontrar em sua nave dentro de dois minutos ― disse Arthur, com uma cara que indicava total ausência de pensamentos. Começaram a andar na direção da nave. Estranhos sons chegavam até eles. Tentaram não ouvi-los, mas não podiam deixar de notar que Slartibartfast estava exigindo, com veemência, que a urna de prata contendo as Cinzas lhe fosse entregue, posto que era, disse ele, "de vital importância para a segurança presente, passada e futura da Galáxia". Era isso que estava causando os risos histéricos. Resolveram ignorar o assunto.
Não puderam, contudo, ignorar o que aconteceu em seguida. Com um barulho similar a 100 mil pessoas dizendo "uop", uma espaçonave branca metálica pareceu se materializar do nada diretamente sobre o campo de críquete e lá ficou parada, com um ar infinitamente ameaçador e um leve zumbido.
Por algum tempo, não fez nada, como se desejasse que as pessoas continuassem com seus afazeres e não se preocupassem com o fato de ela ficar suspensa no ar. Depois fez algo muito extraordinário. Ou, mais precisamente, ela se abriu e deixou que coisas muito extraordinárias saíssem dela, 11 coisas muito extraordinárias. Eram robôs brancos.
O que havia de mais extraordinário a respeito deles era que pareciam estar vestidos para aquele evento. Não apenas eram brancos, mas além disso carregavam coisas que pareciam ser bastões de críquete, e não apenas isso, mas também carregavam o que pareciam ser bolas de críquete, e não apenas isso, mas também usavam joelheiras brancas na parte inferior de suas pernas. As joelheiras eram extraordinárias, porque continham jatos que permitiam a esses robôs curiosamente civilizados descer voando de sua nave suspensa sobre o campo e começar a matar pessoas, que foi exatamente o que eles fizeram.
― Olhe ― disse Arthur ―, parece que está acontecendo alguma coisa.
― Vá para a nave ― gritou Ford. ― Não quero saber, não quero ver, não quero ouvir ― gritou enquanto corria. ― Este não é meu planeta, não escolhi estar aqui, não quero me envolver, só quero que me tirem daqui e me levem para uma festa onde tenha pessoas como eu!
Fumaça e chamas subiam do campo.
― Nossa, parece que a brigada sobrenatural resolveu aparecer por aqui hoje com força total... ― um rádio gargarejou alegremente para si mesmo.
― Eu preciso ― gritou Ford, a fim de esclarecer suas observações anteriores ― é
de um drinque bem forte e uma galera legal. ― Continuou correndo, parando apenas um breve instante para puxar Arthur pelo braço. Arthur havia retomado seu papel habitual durante crises, que era o de ficar parado, com a boca aberta, deixando-se levar pelos eventos.
― Estão jogando críquete ― murmurou Arthur, cambaleando atrás de Ford. ― Juro que estão jogando críquete. Não sei por que, mas é o que estão fazendo. Não estão apenas matando as Pessoas, estão debochando delas ― gritou. ― Ford, estão debochando de nos!
Teria sido difícil não acreditar nisso sem conhecer muito mais História Galáctica do que os poucos pedaços que Arthur havia conseguido pescar em suas viagens. As violentas e fantasmagóricas formas que se moviam na espessa nuvem de fumaça pareciam estar realizando uma série de paródias peculiares de movimentos com os bastões, com a diferença que cada uma das bolas que rebatiam com seus bastões explodia ao tocar em algo. A primeira delas alterou a reação inicial de Arthur, que tinha pensado que aquilo poderia ser um mero golpe publicitário dos fabricantes australianos de margarina.
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Então, tão repentinamente quanto havia começado, acabou-se. Os 11 robôs brancos subiram em meio à nuvem de fumaça em uma formação cerrada e entraram no interior de sua nave branca flutuante que, com o ruído de centenas de milhares de pessoas dizendo
"uop", imediatamente desapareceu no ar, da mesma forma como havia feito "uop" anteriormente.
Durante um instante houve um terrível silêncio de perplexidade e, em seguida, a figura pálida de Slartibartfast surgiu em meio à fumaça, parecendo-se ainda mais com Moisés porque, apesar da persistente ausência do monte, ao menos agora ele estava caminhando através de um imponente e fumegante campo de grama bem aparada. Ele olhou em volta, meio perdido, até vislumbrar Arthur e Ford, que estavam abrindo caminho em meio à multidão apavorada que, nesse momento, estava ocupada correndo em pânico na direção oposta. A multidão estava claramente pensando consigo mesma sobre quão estranho aquele dia estava sendo, sem saber de fato em que direção deveria seguir, se é que deveria seguir em alguma direção.