Ellen olhou em silêncio para a criança por um longo tempo, e depois disse, numa voz abafada:
- Ela devia ter morrido com os outros.
Foi a vez de Milo ficar chocado.
- O que está dizendo?
- O testamento de Byron deixa tudo para Patricia. Você passará os próximos vinte anos como seu tutor, a fim de que ela possa, quando crescer, humilhá-lo tanto quanto o pai. É isso o que você quer?
Milo ficou quieto.
- Jamais teremos outra oportunidade como essa. - Ela olhava fixamente para a criança e havia uma expressão desvairada em seus olhos que Milo nunca vira antes. Ela parecia… "Ela está fora de si. Sofrendo de uma concussão."
- Pelo amor de Deus, Ellen, o que se está passando?
Ela fitou-o em silêncio por um momento, o brilho desvairado desapareceu-lhe dos olhos.
- Não sei - respondeu Ellen, calmamente. Após uma pausa, ela acrescentou: - Há uma coisa que podemos fazer: deixá-la em algum lugar, Milo. Segundo o piloto, estamos perto da Ávila. Deve haver muitos turistas lá. Não há motivo que alguém associe a criança com o desastre de avião.
Ele sacudiu a cabeça.
- Os amigos sabem que Byron e Susan trouxeram Patricia.
Ellen olhou para o avião em chamas.
- Isso não é problema. Todos morreram queimados no avião. Faremos um serviço in memoriam particular aqui.
- Não podemos fazer isso, Ellen. Jamais poderíamos escapar impunes.
- Deus fez por nós. Conseguiremos escapar.
Milo contemplou a criança.
- Mas ela é tão…
- Ela ficará bem. Vamos largá-la numa bela casa de fazenda, nos arredores da cidade. Alguém irá adotá-la, e ela crescerá para levar uma vida feliz aqui.
Milo sacudiu a cabeça.
- Não posso fazer isso. De jeito nenhum.
- Se me ama, fará isso por nós. Precisamos escolher, Milo. Pode ter-me a mim ou passar o resto da vida trabalhando para a filha de seu irmão.
- Por favor, eu…
- Você me ama?
- Mais do que minha própria vida.
- Pois então prove.
Os dois desceram pela encosta da montanha, no escuro, com todo cuidado, fustigados pelo vento. Como o avião caíra numa área de muitas árvores, o estrondo fora abafado, e por isso os habitantes locais ainda não sabiam do acidente.
Três horas depois, nos arredores de Ávila, encontraram uma pequena casa de fazenda. Ainda não amanhecera.
- Vamos deixá-la aqui - sussurrou Ellen.
Milo fez a última tentativa.
- Ellen, não poderíamos…?
- Faça o que estou mandando!
Sem dizer nada, ele levou a criança para a porta da casa. A menina usava apenas uma camisola rosa rasgada, enrolada numa manta.
Milo contemplou Patricia por um longo momento, os olhos marejados de lágrimas, depois ajeitou-a no chão, com delicadeza.
E sussurrou:
- Seja feliz, querida.
O choro despertou Asunción Moras. Por um momento sonolenta, ela pensou que fosse o balido de uma cabra ou de uma ovelha.
"Como escapara do cercado?"
Resmungando, Asunción levantou-se da cama quente, pôs um velho chambre desbotado e encaminhou-se para a porta. Ao ver a criança aos gritos e esperneando, ela exclamou:
- Madre de Dios! - e ela chamou o marido.
Recolheram a criança, que não parava de chorar, e parecia estar ficando azul.
- Temos de levá-la para o hospital.
Envolveram a criança com outra manta, pegaram a camioneta e foram para o hospital. Sentaram-se num banco no corredor comprido, à espera de atendimento. Meia hora depois apareceu um médico, que levou a criança para exame.
- Ela está com pneumonia - avisou ele.
- Vai sobreviver?
O médico encolheu os ombros.
Milo e Ellen Scott entraram cambaleando na delegacia da polícia em Ávila.
O sargento de plantão fitou os dois turistas enlameados.
- Buenos dias. Em que posso ajudá-los?
- Houve um terrível acidente - avisou Milo. - Nosso avião caiu numa montanha e…
Uma hora depois, uma expedição de socorro estava a caminho da montanha. Quando lá chegou, não havia nada a fazer, a não ser ver os restos carbonizados e fumegantes de um avião e seus passageiros.
O inquérito sobre o acidente foi conduzido de maneira superficial pelas autoridades espanholas.
- O piloto não deveria tentar voar numa tempestade tão intensa. Devemos atribuir o acidente a erro do piloto.
Não havia motivo para que alguém de Ávila associasse o desastre de avião com uma criança pequena deixada na porta de uma casa de fazenda.
Estava acabado.
Estava apenas começando.
Milo e Ellen realizaram um serviço in memoriam particular por Byron, a esposa Susan e a filha Patricia. Ao voltarem a Nova York, realizaram outro in memoriam, com a presença dos chocados amigos dos Scotts.
- Que tragédia terrível! E a pobre Patricia…
- É verdade - murmurou Ellen, tristemente. - A única bênção é que aconteceu tão depressa que nenhum deles sofreu.
A comunidade financeira ficou abalada com a morte de Byron Scott. A cotação da ação da Scott Industries caiu. Mas Ellen Scott não se preocupou. Tranquilizou o marido:
- Não há problema. Tornará a subir. Você é melhor do que Byron jamais foi. Ele conteve a companhia, Milo. Agora, vamos fazê-la avançar.
Milo abraçou-a.
- Não sei o que faria sem você.
Ellen sorriu.
- Não haverá necessidade. Daqui por diante, teremos tudo no mundo que sempre sonhamos.
Ela apertou-o firme e pensou: "Quem poderia acreditar que Ellen Dudash, de uma pobre família polonesa de Gary, Indiana, diria um dia "Daqui por diante teremos tudo no mundo com que sempre sonhamos"?"
E ela falava sério.
A criança permaneceu no hospital por dez dias, lutando por sua vida. Depois que a crise passou, o padre Berrendo procurou o camponês e a esposa.
- Tenho boas notícias para vocês - disse ele. - A criança vai ficar boa.
Os Moras trocaram um olhar contrafeito.
- Fico contente por ela - murmurou o camponês, evasivo.
Padre Berrendo estava radiante.
- É uma dádiva de Deus.
- Claro, padre. Mas minha esposa e eu conversamos e chegamos à conclusão de que Deus é generoso demais conosco. Sua dádiva exige alimentação, e não temos condições de sustentá-la.
- Mas ela é uma criança muito bonita - ressaltou padre Berrendo. - Além disso…
- Concordo. Mas minha esposa e eu somos velhos e doentes, não podemos assumir a responsabilidade de criar uma criança. Deus terá de aceitar sua dádiva de volta.
E assim, sem ter para onde ir, a criança foi enviada para o orfanato em Ávila.
Milo e Ellen estavam sentados no escritório do advogado de Byron Scott para a leitura do testamento. Os três eram as únicas pessoas presentes. Ellen sentiu um excitamento quase insuportável. Umas poucas palavras num pedaço de papel fariam com que ela e Milo se tornassem ricos para sempre.
"Compraremos obras dos velhos mestres, uma propriedade em Southampton, um castelo na França. E isso é apenas o começo."
O advogado começou a falar, e Ellen concentrou-se nele.
Meses antes, ela vira uma cópia do testamento de Byron, e sabia exatamente o que dizia:
"No caso de minha esposa e eu falecermos, deixo todas as minhas ações na Scott Industries para minha única filha, Patricia, e designo meu irmão Milo como executor testamentário, até que ela alcance a idade legal e possa assumir…"
"Pois tudo isso está mudado agora", pensou Ellen, na maior emoção.
O advogado, Lawrence Gray, disse solenemente:
- Foi um terrível choque para todos nós. Sei o quanto você amava seu irmão, Milo, e aquela linda criança… - Ele sacudiu a cabeça. - Mas a vida precisa de continuar. Talvez não saiba que seu irmão havia alterado o testamento. Não vou incomodá-lo com aspetos jurídicos. Lerei apenas a parte essencial. - Folheou o testamento e encontrou o parágrafo que procurava. - Corrijo este testamento para que minha filha, Patricia, receba a quantia de cinco milhões de dólares e mais a distribuição de um milhão de dólares por ano, pelo resto de sua vida. Todas as ações na Scott Industries em meu nome ficarão para meu irmão, Milo, como uma recompensa pelos longos, fiéis e valiosos serviços que prestou à companhia ao longo dos anos.