Rubio Arzano estava sentado, observando-a, relutante em acordá-la. "Ela dorme como um anjo", pensou.
Mas era quase manhã, hora de seguir viajem. Rubio inclinou-se e sussurrou gentilmente em seu ouvido:
- Irmã Lucia…
Ela abriu os olhos.
- Está na hora de partirmos.
Lucia bocejou e espreguiçou-se. A blusa desabotoara e parte de um seio apareceu. Rubio logo desviou os olhos.
"Devo me precaver contra meus pensamentos. Ela é a esposa de Jesus."
- Irmã…
- O que é?
- Eu… eu gostaria de lhe pedir um favor. - Ele estava quase corando.
- Pode pedir.
- Eu… já faz muito tempo que rezei pela última vez, mas fui criado como católico. Importa-se de dizer uma oração?
"Há quanto tempo eu não faço uma oração?", indagou-se Lucia. O convento não contava. Enquanto as outras rezavam, sua mente estava ocupada com os planos de fuga.
- Eu…, eu não…
- Tenho certeza que isso faria com que nos sentíssemos melhor.
Como ela podia explicar que não se lembrava de nenhuma oração?
- Eu… ahn…
"Ei!" Havia uma de que se lembrava agora. Era pequena, ajoelhada junto a cama, o pai de pé ao seu lado, pronto para ajeitá-la na cama. Lentamente, as palavras do Salmo 23 começaram a aflorar-lhe.
- O Senhor é meu pastor. Nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes: leva-me para junto das águas de descanso. Refrigera-me a alma: guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome…
As lembranças jorravam.
Lucia e o pai possuíam um mundo. E ele sentia o maior orgulho da filha.
"Você nasceu sob uma estrela da sorte, faccia d'angelo."
E, ouvindo isso, Lucia sentira-se afortunada e bela. Não era a linda filha do grande Angelo Carmine?
- … Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei o mal…
O mal era representado pelos inimigos de seu pai e irmãos. E ela os fizera pagar.
- Porque estás comigo; Tua vara e cajado me sustentam…
"Onde estava Deus quando precisei de conforto e apoio?"
- Preparas-me uma mesa com óleo, minha taça transborda…
Ela falava mais devagar agora, a voz um mero sussurro. O que acontecera, especulou, com a menininha no vestido branco da primeira comunhão? O futuro parecia maravilhoso. De alguma forma, tudo saíra errado. Tudo." "Perdi meu pai e meus irmãos, e a mim mesma."
No convento, ela não pensava em Deus. Mas agora, aqui fora, com aqueles camponeses tão simples… "Importa-se de dizer uma oração por nós?"
Lucia continuou.
- Bondade e misericórdia me acompanharão com certeza por todos os dias da minha vida, e habitarei para sempre na casa do Senhor.
Rubio observava-a, comovido.
- Obrigado, irmã.
Lucia acenou com a cabeça, incapaz de falar. "O que está acontecendo comigo?", perguntou-se.
- Está pronta, irmã?
Ela olhou para Rubio Arzano.
- Estou, sim.
Cinco minutos depois os dois estavam a caminho.
Foram apanhados por um súbito temporal e abrigaram-se numa cabana abandonada. A chuva caía com violência contra o telhado e os lados da cabana.
- Acha que a tempestade vai passar algum dia?
Rubio sorriu.
- Não é uma tempestade de verdade, irmã. É o que nós, os bascos, chamamos de sirimiri. Vai passar tão depressa quanto começou. A terra está muito seca. Precisa desta chuva.
- É mesmo?
- Conheço essas coisas. Sou um lavrador.
"Dá para perceber", pensou Lucia.
- Perdoe-me por dizer isso, irmã, mas nós dois temos muita coisa em comum.
Lucia contemplou o empavonado camponês e pensou: "Esse dia nunca vai chegar."
- Acha mesmo?
- Acho. Acredito sinceramente que, em muitas coisas, viver numa fazenda é como estar num convento.
Ela não percebeu a ligação.
- Não entendi.
- Ora, irmã, num convento se pensa muito sobre Deus e Seus milagres. Não é verdade?
- Isso mesmo.
- De certa forma, uma fazenda é Deus. Vive-se cercado pela criação. Todas as coisas que crescem da terra de Deus, quer seja trigo, azeitonas ou uvas… tudo vem de Deus, não é mesmo? São milagres e acontecem todos os dias… e como você ajuda as coisas a crescer, é parte do milagre.
Lucia não pôde deixar de sorrir pelo entusiasmo em sua voz.
A chuva parou de repente.
- Podemos continuar agora, irmã. Chegaremos ao rio Duero daqui a pouco - disse Rubio. - As cataratas Peñafiel ficam logo à frente. Continuaremos por Aranda de Duero e depois seguiremos para Logroño, onde nos encontraremos com os outros.
"Você estará indo para esses lugares", pensou Lucia. "E boa sorte. Eu estarei na Suíça, meu amigo."
Ouviram o barulho das cataratas meia hora antes de alcançarem-nas. As cataratas Peñafiel eram um espetáculo deslumbrante, as águas caindo abruptamente no rio veloz. Seu estrondo era quase ensurdecedor.
- Quero tomar um banho - disse Lucia.
Parecia que já se passara anos desde a última vez em que tomara um banho.
Rubio ficou surpreso.
- Aqui?
"Não, seu idiota, em Roma."
- Isso mesmo.
- Tome cuidado. O rio está cheio por causa da chuva.
- Não se preocupe. - Ficou parada, esperando pacientemente.
- Ah… vou me afastar enquanto se despe.
- Não vá muito longe - pediu Lucia. - Provavelmente havia animais selvagens no bosque.
Enquanto Lucia começava a tirar as roupas, Rubio afastou-se alguns passos, apressado, e ficou de costas.
- Não vá muito longe, irmã. O rio é traiçoeiro.
Lucia deixou a cruz embrulhada num lugar em que poderia vigiá-la. O ar frio da manhã era maravilhoso em seu corpo nu.
Despiu-se completamente e entrou na água. Estava fria e revigorante. Virou-se e constatou que Rubio continuava com os olhos voltados para o outro lado, de costas para ela. Sorriu para si mesma. Todos os homens que conhecera estariam regalando os olhos.
Ela avançou mais um pouco, evitando as pedras à sua volta.
Jogou água na cabeça, sentindo o rio impetuoso empurrando-lhe as pernas com força. Perto dali uma pequena árvore estava sendo arrastada pela correnteza. Ao se virar para observá-la, Lucia perdeu subitamente o equilíbrio e escorregou, gritando. Bateu com a cabeça numa pedra ao cair.
Rubio virou-se e observou horrorizado, enquanto Lucia desaparecia nas águas tumultuosas.
Capítulo 23
Quando o sargento Florian Santiago desligou o telefone na delegacia de polícia de Salamanca, suas mãos tremiam.
"Estou com Jaime Miró e três terroristas aqui. Não gostaria de ter a honra de prendê-los?"
O governo prometera uma grande recompensa pela cabeça de Jaime Miró, e agora o bandido basco se encontrava em suas mãos. O dinheiro da recompensa mudaria sua vida por completo.
Poderia mandar os filhos para uma escola melhor, comprar uma máquina de lavar roupa para a esposa e jóias para a amante.
Claro que teria de partilhar uma parte da recompensa com o tio. "Darei vinte por cento a ele", pensou Santiago. "Ou talvez dez por cento."
Ele estava bem a par da reputação de Jaime Miró e não tinha a menor intenção de arriscar a vida na tentativa de capturar o terrorista. "Que os outros enfrentem o perigo e me entreguem a recompensa."
Continuou sentado à mesa, à procura da melhor maneira de cuidar da situação. O nome do coronel Acoca aflorou-lhe no mesmo instante na mente. Todo mundo sabia que havia uma vendeta de sangue entre o coronel e o terrorista. Além do mais, o coronel tinha todo o "GOE" sob seu comando. Isso mesmo, era a melhor maneira de agir.
Santiago pegou o telefone, e dez minutos depois falava pessoalmente com o coronel.
- Aqui é o sargento Florian Santiago, da delegacia de polícia em Salamanca. Descobri o paradeiro de Jaime Miró.
O coronel Ramón Acoca fez um esforço para manter a voz calma.
- Tem certeza?