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- Alguém virá falar-lhe.

Dois detetives apareceram quase que no mesmo instante.

- Alguém foi apunhalado, señorita?

- Isso mesmo. Acompanhe-me, por favor. Depressa!

- Vamos apanhar o médico no caminho - disse um dos detetives. - E depois poderá nos levar a seu amigo…

Pegaram o médico em sua casa, e Lucia conduziu o grupo à igreja. O médico foi até o corpo imóvel no chão e ajoelhou-se ao lado. Levantou o rosto um momento depois.

- Ainda está vivo, mas corre perigo. Chamarei uma ambulância.

Lucia ajoelhou-se e murmurou em silêncio: "Obrigada, Deus. Fiz tudo o que pude. Agora deixe-me escapar, sã e salva, e nunca mais tornarei a incomodá-lo."

Um dos detetives observava Lucia por todo o caminho até a igreja. Ela lhe parecia familiar. E de repente ele compreendeu por quê. Tinha uma semelhança extraordinária com o retrato na Vermelha, a circular de prioridade da Interpol.

O detetive sussurrou alguma coisa a seu companheiro e os dois se viraram para estudá-la. Então aproximaram-se de Lucia.

- Com licença, señorita. Poderia fazer a gentileza de nos acompanhar de volta à delegacia? Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.

Capítulo 28

Ricardo Mellado encontrava-se a uma curta distância da caverna na montanha quando avistou subitamente uma enorme loba cinzenta encaminhando-se para a entrada. Ficou paralisado por um único instante, depois saiu correndo, como nunca correra em toda a sua vida. Disparou para a entrada da caverna.

- Irmã!

Na semi-escuridão, divisou a forma enorme e cinzenta saltar em cima de Graciela. Instintivamente, pegou a pistola e atirou. A loba saltou um uivo de dor e virou-se para Ricardo.

Ele sentiu as presas do animal ferido lhe rasgando as roupas, sentiu seu bafo fético. A loba era mais forte do que esperava, pesada e musculosa. Ricardo tentou se desenvencilhar, mas era impossível.

Sentiu que começava a perder os sentidos. Percebeu vagamente que Graciela se aproximava e gritou:

- Fuja!

Viu então a mão de Graciela levantar por cima de sua cabeça. No momento em que começava a descer, percebeu que segurava uma pedra enorme e pensou: "Ela vai me matar."

Um instante depois a pedra passou por ele e esmagou o crânio da loba. Houve um último e selvagem estertor, depois o animal ficou imóvel no chão. Ricardo encontrava-se todo encolhido, lutando para respirar.

Graciela ajoelhou-se ao seu lado.

- Você está bem? - Sua voz tremia de preocupação.

Ele conseguiu balançar a cabeça. Ouviu um som de lamúria por trás e virou-se para deparar com os filhotes encolhidos num canto. Continuou deitado por mais algum tempo, para recuperar as forças. Finalmente se levantou, com alguma dificuldade.

Saíram cambaleando para o ar puro da montanha, abalados.

Ricardo parou, respirou fundo, enchendo os pulmões, até a cabeça desanuviar. O choque físico e emocional do contato próximo com a morte exercera um efeito profundo sobre os dois.

- Vamos sair logo daqui. Talvez já estejam à nossa procura.

Graciela estremeceu à lembrança do perigo que ainda corriam.

Os dois seguiram a trilha íngreme na montanha durante uma hora. Chegaram a um pequeno córrego, e Ricardo disse:

- Vamos para aqui.

Sem ataduras e anti-sépticos, limparam os arranhões da melhor forma possível, lavando com a água límpida e fria. O braço de Ricardo estava tão rígido que sentia dificuldades para movê-lo. Para sua surpresa, Graciela disse:

- Deixe que eu cuido disso tudo.

Ficou ainda mais surpreso pela gentileza com que ela lavou os ferimentos. De repente, sem aviso, Graciela começou a tremer violentamente, no efeito posterior do choque.

- Está tudo bem - murmurou Ricardo. - Já passou.

Ela não conseguia parar de tremer. Ricardo abraçou-a e disse suavemente:

- Calma, calma… A loba está morta. Não há mais nada a temer.

Apertava-a e podia sentir as coxas se comprimindo contra seu corpo, os lábios macios se encontraram com os seus, Graciela abraçou-o também, sussurrando coisas que Ricardo não pôde compreender.

Era com se sempre tivesse conhecido Graciela. E, no entanto, nada sabia a seu respeito. "Mas ela é um milagre de Deus", pensou Ricardo.

Graciela também pensava em Deus. "Obrigada, Deus, por esta alegria. Obrigada por finalmente me deixar sentir o que é o amor." Experimentava emoções para as quais não tinha palavras, além de qualquer coisa que jamais imaginava.

Ricardo observava-a, e sua beleza ainda o deslumbrava. "Ela me pertence agora", pensou. "Não precisa voltar para um convento. Casaremos e teremos lindos filhos… filhos saudáveis."

- Eu amo você - murmurou ele. - Nunca a deixarei partir, Graciela.

- Ricardo…

- Quero casar com você, querida. Quer se casar comigo?

- Quero… quero, sim! - respondeu Graciela, sem pensar.

E ela se viu outra vez em seus braços e pensou: "Era isso o que eu queria e pensava que nunca teria."

- Viveremos por algum tempo na França, onde estaremos seguros. Esta luta acabará em breve, e voltaremos à Espanha - dizia Ricardo.

Graciela sabia que iria para qualquer lugar com aquele homem, e se houvesse perigo, haveria de partilhá-lo ao seu lado. Conversaram sobre muitas coisas. Ricardo contou como se envolvera com Jaime Miró, do noivado desfeito e da insatisfação do pai. Mas, depois, quando esperou que Graciela falasse de seu passado, ela se manteve em silêncio.

Graciela fitou-o e pensou: "Não posso contar. Ele vai me odiar."

- Abrace-me! - suplicou ela.

Dormiram e acordaram ao amanhecer para contemplar o sol escalar o topo da montanha, banhando as encostas com um suave clarão vermelho.

- Estaremos mais seguros escondidos por aqui hoje - comentou Ricardo. - Começaremos a viajar assim que escurecer.

Comeram os alimentos dados pelos ciganos e planejaram o futuro.

- Há oportunidades maravilhosas aqui na Espanha - falou Ricardo. - Ou haverá quando tivermos paz. Tenho muitas idéias. Abriremos nosso próprio negócio. Compraremos uma bonita casa e criaremos lindos filhos.

- E lindas filhas.

- E lindas filhas. - Ele sorriu. - Nunca pensei que pudesse me sentir tão feliz.

- Nem eu, Ricardo.

- Estaremos em Logroño dentro de dois dias e nos encontraremos com os outros. - Segurou-lhe a mão. - E contaremos que você não voltará ao convento.

- Não sei se vão compreender - riu Graciela. - Mas não me importa. Deus compreende. Eu adorava a vida no convento, mas… - Inclinou-se e beijou-o.

- Preciso compensá-la por muita coisa.

Ela ficou perplexa.

- Não estou entendendo.

- Todos os anos em que você esteve no convento, excluída do mundo. Diga-me uma coisa, querida… incomoda-a ter perdido tantos anos?

Como podia fazê-lo entender?

- Ricardo… não perdi coisa alguma. Acha mesmo que perdi tanta coisa?

Ele pensou a esse respeito, sem saber por onde começar.

Concluiu que coisas que julgava de maior importância não teriam o menor significado para as freiras em seu isolamento. Guerras, como a guerra árabe-israelita? Assassinatos de líderes políticos, como o do presidente americano Jonh Kennedy e seu irmão, Robert Kennedy? E de Martin Luther King, Jr., o grande líder do movimento da não-violência pela igualdade negra? O Muro de Berlim? Fomes? Inundações? Terremotos? Greves e manifestações de protestos contra a desumanidade do homem com seu semelhante?

Afinal, quão profundamente qualquer dessas coisas afetariam a vida pessoal de Graciela? Ou as vidas pessoais da maioria das pessoas do mundo?

- De certa forma, você não perdeu muita coisa. Mas, por outro lado, perdeu. Algo importante tem acontecido. Vida. Enquanto se manteve apartada durante todos esses anos, crianças nasceram e cresceram, namorados casaram, pessoas sofreram e foram felizes, outras morreram e todos nós aqui fora fomos uma parte do ato de viver.