— Estes pêssegos são deliciosos — comentou Kaldor taticamente enquanto se servia de outro, muito embora soubesse perfeitamente bem que eles haviam sido destinados a Loren.
— Mas vocês tiveram sorte, não tendo que enfrentar nenhuma crise verdadeira durante setecentos anos! Não foi um de vocês que disse uma vez: Thalassa não possui história, apenas estatísticas? — Oh, mas isso não é verdade! E quanto ao Monte Krakan? — Foi um desastre natural que dificilmente poderia ser considerado dos grandes. Eu estou me referindo a… bem, a crises políticas: agitação popular, esse tipo de coisas.
— Podemos agradecer à Terra por isso. Vocês nos deram uma Constituição Jefferson Mark 3, que alguém já chamou de Utopia em Dois Megabytes, e ela tem funcionado extraordinariamente bem. O programa não é modificado há trezentos anos.
— E ainda estamos apenas na Sexta Emenda.
— E que fiquem nela — disse Kaldor fervorosamente.
— Eu detestaria pensar que fomos responsáveis pela Sétima.
— Se isso acontecer, será processado primeiro nos bancos de memória dos Arquivos. Quando virá nos visitar de novo? Há tantas coisas que eu gostaria de lhe mostrar.
— Não virei tanto quanto gostaria. Vocês devem ter muita coisa que nos será útil em Sagan 2, mesmo sendo um tipo bem diferente de mundo.
— „E bem menos atraente”, acrescentou para si mesmo. Enquanto estavam conversando, Loren chegou sem fazer ruído na área de recepção, obviamente vindo da sala de jogos e seguindo para os chuveiros. Estava usando um short sumário e tinha uma toalha jogada sobre os ombros nus. A visão deixou Mirissa com as pernas moles.
— Suponho que já derrotou todos, Kaldor.
— Não fica tedioso? Loren deu um sorriso malicioso.
— Alguns dos jovens lassanianos prometem. Um acaba de fazer três pontos contra mim. É claro que na ocasião eu estava jogando com a mão esquerda.
— É improvável que ele já lhe tenha contado — observou Kaldor para Mirissa.
— Mas Loren foi campeão de ping-pong da Terra.
— Não exagere, Moisés. Eu era apenas o número cinco e os padrões estavam miseravelmente baixos, perto do fim. Qualquer jogador chinês do Terceiro Milênio teria me pulverizado.
— Eu não creio que tenha pensado em ensinar a Brant — disse Kaldor matreiramente.
— Seria interessante.
como de hábito — disse Houve um breve silêncio, e Loren respondeu, de modo presunçoso mas preciso: — Isso não seria justo.
— Mas acontece — disse Mirissa — que Brant gostaria de lhe mostrar alguma coisa.
— É? — Você disse que nunca esteve num bote.
— É verdade.
— Então está convidado a encontrar Brant e Kumar no Pier Três, amanhã, às oito e meia. Loren voltou-se para Kaldor.
— Você acha que é seguro ir? — perguntou, com falsa seriedade.
— Eu não sei nadar.
— Eu não me preocuparia com isso — respondeu Kaldor solícito.
— Se eles estiverem planejando uma viagem só de ida para você, isso não fará a menor diferença.
18. KUMAR
Apenas uma tragédia obscurecera os dezoito anos de vida de Kumar Leônidas. Ele seria sempre dez centímetros mais baixo do que no fundo desejava. Não era surpreendente que seu apelido fosse „O Leãozinho”, embora poucos se atrevessem a usá-lo na sua presença. Para compensar a baixa estatura, ele se empenhava em desenvolver largura e rigidez. Muitas vezes Mirissa lhe dissera, em meio a divertida exasperação:
— Kumar, se você passasse o mesmo tempo que gasta com o corpo desenvolvendo o cérebro, seria o maior gênio de Thalassa. O que ela nunca lhe dissera, e dificilmente admitia para si mesma, era que o espetáculo daqueles exercícios matinais produzia nela sentimentos incestuosos, bem como certo ciúme de outras admiradoras que se reuniam para olhar e que representavam a maior parte das garotas da faixa etária de Kumar. Embora o boato invejoso de que ele já havia feito amor com todas as garotas e metade dos rapazes de Tarna fosse uma especulação extravagante, continha um certo fundo de verdade. Mas Kumar, a despeito do abismo intelectual que o separava de sua irmã, não era nenhum idiota musculoso. Se alguma coisa o interessava, não se dava por satisfeito até que a tivesse dominado, não importando quanto tempo isso levasse. Ele era um soberbo navegador, e em dois anos, com a ajuda ocasional de Brant, construíra um soberbo caíque de quatro metros. O casco estava completo, mas ainda não começara a trabalhar no convés.
Um dia, ele jurara, iria lançá-lo ao mar e todos deixariam de rir. Enquanto isso a frase „o caíque de Kumar” passara a ser sinônimo de qualquer trabalho longo e não terminado em Tarna — dos quais, aliás, havia muitos. À parte a tendência comum dos lassanianos para atrasar os serviços, um dos maiores defeitos de Kumar era seu caráter aventureiro e seu gosto por pregar peças às vezes arriscadas. Isto ainda iria colocálo em sérios apuros, pensavam todos. Ainda assim era impossível se irritar, mesmo com suas brincadeiras mais infames, porque eram totalmente destituídas de maldade.
Kumar era uma pessoa aberta, transparente, e era impossível imaginá-lo dizendo uma mentira. Por isto podia-se perdoá-lo muitas vezes, como quase sempre acontecia. A chegada dos visitantes havia, é claro, sido o acontecimento mais emocionante de sua vida. Ficava fascinado com o equipamento deles, as gravações sensórias de som e vídeo que haviam trazido, as histórias que contavam, enfim: tudo a respeito deles. Como via mais Loren do que qualquer outro, não era surpreendente que Kumar se ligasse a ele. Isto não agradava muito a Loren. Se havia uma coisa mais indesejável do que uma companhia inconveniente era o tradicional „estraga-prazeres”, o irmãozinho pegajoso.
19. LINDA POLLY
— Eu ainda não consigo acreditar, Loren — disse Brant, Falconer.
— Você nunca esteve antes num barco ou num navio? — Eu me lembro de ter remado uma balsa de borracha num pequeno lago. Isso foi quando eu tinha cinco anos de idade.
— Então você vai gostar disso aqui. Não há nem mesmo uma onda para incomodar o seu estômago. Talvez possamos convencê-lo a mergulhar conosco.
— Não, obrigado. Uma experiência nova de cada vez. E eu já aprendi a não me colocar no caminho de homens que têm algum trabalho a fazer. Brant estava com a razão, ele estava começando a apreciar a coisa enquanto os hidrojatos impulsionavam o pequeno trimarã, quase silenciosamente, em direção ao recife. E no entanto, assim que subira a bordo e avistara a firme segurança da orla da praia recuar rapidamente, Loren experimentara um princípio de pânico. Somente o senso do ridículo o impedira de fazer um papelão.
Tinha atravessado cinqüenta anos-luz, na mais longa jornada já feita por seres humanos, até chegar àquele local. E agora preocupava-se com algumas centenas de metros que o separavam da terra firme mais próxima. E, no entanto, não havia maneira pela qual ele pudesse ter recusado o desafio. Enquanto se recostava à vontade na popa, observando Falconer no leme (como teria surgido aquela cicatriz branca sobre os ombros? Oh sim, ele tinha mencionado alguma coisa a respeito de uma queda numa microaeronave, alguns anos atrás…), ele se perguntava o que estaria passando na mente do lassaniano. Era difícil acreditar que qualquer sociedade humana, mesmo a mais esclarecida ou indolente, pudesse estar inteiramente livre do ciúme, ou de qualquer outra forma de possessividade sexual. Não que houvesse muita coisa — até agora! — capaz de deixar Brant ciumento. Loren duvidava que houvesse trocado mais do que umas cem palavras com Mirissa, a maioria delas na presença de seu marido. Correção: em Thalassa os termos marido e esposa não eram usados até o nascimento do primeiro filho. Quando um filho era escolhido, a mãe, geralmente, mas não invariavelmente, passava a usar o nome do pai. Se o primogênito era uma menina, ambas mantinham o nome da mãe, pelo menos até o nascimento do segundo e último filho. Havia poucas coisas capazes de chocar os lassanianos. Crueldade, principalmente com relação a crianças, era uma delas. E ter uma terceira gravidez, num mundo com apenas vinte mil quilômetros quadrados de terra, era outra. A mortalidade infantil era tão baixa que dois partos eram suficientes para manter uma população constante. Tinha havido um caso famoso, único em toda a história de Thalassa, em que uma família recebera a bênção, ou a desgraça, de quíntuplos nos dois partos seguidos. Embora a pobre mãe dificilmente pudesse ser culpada, sua memória estava agora cercada por aquela aura de gostosa devassidão que certa vez envolvera os nomes de Lucrécia Bórgia, Messalina ou Faustine.