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— Como você descende de uma vasta linhagem de bibliotecários — disse Moisés Kaldor —, só pensa em megabytes. Mas eu devo lembrar-lhe de que o nome „biblioteca” vem de uma palavra

que significa livro. Vocês possuem livros em Thalassa? — Claro que temos — respondeu Mirissa indignada. Ela ainda não aprendera a perceber quando Moisés estava brincando.

— Milhões… bem, milhares. Há um homem na Ilha do Norte que imprime dez por ano, em edições de algumas centenas. Eles são lindos e muito caros e acabam como presentes em ocasiões especiais. Eu ganhei um quando fiz 21 anos, Alice no país das maravilhas.

— Eu gostaria de vê-lo um dia desses. Eu sempre adorei os livros e tenho quase uns cem a bordo da nave. Talvez seja por isso que sempre que ouço alguém falando em bytes eu divido mentalmente por um milhão e penso em um livro. Um gigabyte igual a mil livros, e assim por diante. É o único modo pelo qual consigo compreender quando as pessoas falam em bancos de dados e transferências de memória. Agora, qual o tamanho da sua biblioteca? Sem tirar os olhos de Kaldor, Mirissa deixou que seus dedos percorressem o teclado de seu consolo.

— Isso é outra coisa que nunca fui capaz de fazer — disse ele com admiração.

— Alguém disse que depois do século XXI a raça humana podia ser dividida em duas espécies — os Verbais e os Digitais. Eu posso usar um teclado quando preciso, mas prefiro falar com meus colegas eletrônicos.

— De acordo com a última checagem feita de hora em hora — disse Mirissa —, seiscentos e quarenta e cinco terabytes.

— Hum, quase um tamanho inicial da biblioteca? bilhão de sem livros. E qual era o — Eu posso lhe dizer isso quarenta.

— Assim, em setecentos anos… olhar. Seiscentos e — De fato, nós conseguimos produzir apenas alguns milhões de livros.

— Não estou criticando, afinal, a qualidade é muito mais importante do que a quantidade. Eu gostaria que me mostrasse aqueles que são considerados os melhores trabalhos de literatura lassaniana, de música também. O grande problema é que temos que decidir o que dar a vocês. A Magalhães possui mais de mil megalivros a bordo, no banco de Acesso Geral. Sabe o que isso implica? — Se eu dissesse „sim”, lhe tiraria a chance de me contar. Não sou tão cruel.

— Obrigado, minha cara. Falando sério, este é um problema terrível, que me assombrou durante anos. De vez em quando, eu penso que a Terra foi destruída na hora certa, já que a raça humana

estava sendo esmagada pelo peso da informação que havia gerado. No final do segundo milênio, ela produzia apenas — apenas! — o equivalente a um milhão de livros por ano. E eu só estou me referindo à informação que se presumia ser de algum valor permanente, e que por isso era armazenada indefinidamente. Por volta do Terceiro Milênio, este número tinha sido multiplicado pelo menos por cem. Desde que a escrita fora inventada, até o fim da Terra, calcula-se que foram produzidos dez bilhões de livros. E como eu lhe disse, só temos dez por cento disso a bordo. Se nós descarregássemos tudo isso em cima de vocês, mesmo supondo que tivessem a capacidade de armazenagem, vocês seriam sufocados. Não seria bondade alguma, já que iria inibir completamente seu crescimento científico e cultural. E a maior parte do material não iria significar nada para vocês, levariam séculos para separar o joio do trigo.

„Estranho” — pensou Kaldor —, „eu nunca tinha pensado nesta analogia antes. É exatamente este o perigo que aqueles que se opunham ao CIET (N. do T.- Contato com inteligências extraterrenas.) viviam citando. Bem, nós nunca nos comunicamos com a inteligência extraterrestre, mas os lassanianos acabam exatamente de fazer isso e os E. T. somos nós.”

E no entanto, a despeito de suas culturas inteiramente diferentes, ele e Mirissa tinham muito em comum. A curiosidade e a inteligência dela eram tendências a serem encorajadas. Nem mesmo entre seus companheiros de tripulação havia alguém com quem pudesse ter conversas tão estimulantes. Por vezes, Kaldor tinha que se esforçar para poder responder a ela. Perguntas para as quais a única defesa era o ataque.

— Eu fico muito surpreso — disse ele, depois de um minucioso exame de política solar — que você não tenha seguido os passos de seu pai, assumindo plenamente as funções dele. Este seria o trabalho ideal para você.

— Já me senti tentada. Mas ele passou a vida inteira respondendo às perguntas dos outros e organizando arquivos para os burocratas da Ilha do Norte. Nunca teve tempo de fazer nada para ele mesmo.

— E você? — Eu gosto de reunir informações, mas também gosto de vê-las usadas. É por isso que eles me fizeram diretora adjunta do Projeto de Desenvolvimento de Tarna.

— Que eu temo tenha sido ligeiramente sabotado pelas nossas operações. Pelo menos foi isso o que o diretor me disse quando o encontrei saindo do escritório da prefeita.

— Você sabe que Brant não falava a sério. É um projeto de longo alcance com datas aproximadas. Se o estádio de patinação olímpica for construído aqui, então o projeto terá que ser modificado para melhor, a maioria de nós pensa assim. É claro que os nortistas o querem para eles, acham que o Primeiro Pouso já é o suficiente para nós. Kaldor riu, ele sabia tudo a respeito da velha rivalidade entre as duas ilhas.

— E não é mesmo? Especialmente agora que vocês nos têm como atração extra. Vocês não devem querer tudo. Ambos tinham passado a se conhecer tão bem que podiam brincar em relação a Thalassa ou à Magalhães com igual imparcialidade. E não existiam mais segredos entre eles, podiam falar com franqueza a respeito de Loren e Brant, até que, finalmente, Moisés Kaldor se sentiu capaz de falar sobre a Terra.

— …Oh eu perdi a conta dos meus vários empregos, Mirissa, mas a maioria deles não era muito importante, de qualquer modo. O que durou mais tempo foi o de professor de ciência política em Cambridge, Marte. E você não pode imaginar a confusão que isso fazia, porque havia uma universidade mais antiga em Cambridge, Massachusetts, e outra ainda mais velha em Cambridge, Inglaterra. Mas quando o fim se aproximou, eu e Evelyn nos tornamos mais e mais envolvidos com os problemas sociais imediatos, e no planejamento do Êxodo Final. Parecia que tinha certo talento para a oratória e podia ajudar as pessoas a enfrentarem o futuro que lhes restava. E no entanto nunca pude acreditar realmente que o Fim aconteceria em nossa época, e quem poderia? E se alguém me tivesse dito que eu devia deixar a Terra e tudo que amava… A emoção contraiu-lhe o rosto e Mirissa esperou, num silêncio solidário, até que ele recuperasse a serenidade. Havia tantas perguntas que ela desejava fazer, perguntas que levariam uma vida inteira para serem respondidas. E ela só tinha um ano antes que a Magalhães partisse uma vez mais para as estrelas.

— Quando me disseram que eu era necessário, usei todas as minhas habilidades filosóficas e de argumentação para provar que eles estavam errados. Eu estava muito velho, todo o conhecimento que eu tinha encontrava-se armazenado nos bancos de memórias, outros homens poderiam fazer um trabalho melhor… tudo que eu podia imaginar, exceto a verdadeira razão. E, no final, Evelyn fez com que eu me decidisse. É verdade, Mirissa, em certas coisas as mulheres são mais fortes que os homens, mas por que eu estou lhe dizendo isso? „Eles precisam de você” — dizia a última mensagem que recebi dela.

— „Nós passamos quarenta anos juntos e agora só resta um mês. Vá com o meu amor e não tente me encontrar.” E eu jamais saberei se ela viu o fim da Terra como eu vi, quando estávamos deixando o Sistema Solar.