— Krakan! — sussurrou um dos cientistas do norte, e por um momento Loren pensou que ele estivesse apenas usando a exclamação banal dos lassanianos. Foi então que compreendeu, e um vasto sentimento de alívio passou por sua mente. Durou muito pouco.
— Não — exclamou Kumar, parecendo mais alarmado do que Loren julgaria possível —, não foi Krakan, foi bem mais perto. O filho de Krakan. O rádio do barco emitia agora contínuos sinais de alarme, entremeados por solenes mensagens de aviso. Loren não teve tempo para registrá-las quando viu uma coisa muito estranha acontecendo com o horizonte. Ele não se encontrava mais onde devia estar. Tudo era muito confuso, metade de sua mente ainda estava lá embaixo com os scorps e, mesmo agora, ele ainda continuava piscando diante da luz intensa do céu e do mar. Talvez houvesse alguma coisa errada com sua visão. Embora tivesse certeza de que o Calypso se encontrava agora com a quilha inteiramente nivelada, seus olhos lhe diziam que o barco mergulhava de modo abrupto para baixo. Não, era o mar que estava se levantando com uma trovoada que abafava todos os outros sons. Ele não se atrevia a estimar a altura do vagalhão que vinha ao encontro deles. Compreendia por que Brant se dirigia para águas profundas, para longe dos baixios mortíferos contra os quais a enorme onda estava a ponto de despejar sua fúria.
Uma mão gigantesca agarrou o Calypso e o levantou com a proa para cima, em direção ao zênite. Loren começou a escorregar convés abaixo, tentou agarrar um pontalete, não conseguiu e viu-se dentro d’água. „Lembre-se de seu treinamento de emergência”, disse para si mesmo com convicção. No mar ou no espaço os princípios são os mesmos. O perigo maior é o pânico, portanto não perca a cabeça.” Não havia perigo de afogamento, seu colete salva-vidas cuidaria de evitar isso. Mas onde estava a alavanca de inflar? Seus dedos roçaram freneticamente nas correias em sua cintura e, a despeito de toda a força de vontade, sentiu um arrepio gelado antes de encontrar a barra de metal. Ela moveu-se com facilidade e, com grande alívio, sentiu o colete se expandir ao seu redor, envolvendo-o num abraço de boasvindas. Agora o único perigo vinha do próprio Calypso, se iria desabar em sua cabeça. Onde é que ele estava? Para sua tranqüilidade, estava bem próximo, naquele mar agitado, com uma parte da cabine do convés dentro d’água. Inacreditavelmente, a maior parte da tripulação aparentemente ainda estava a bordo. Agora estavam apontando para ele e alguém se preparava para jogar um salva-vidas. A água estava cheia de destroços flutuantes, cadeiras, caixas, peças de equipamento, e lá ia o trenó, afundando lentamente enquanto expelia borbulhas de um tanque de flutuação danificado. „Eu espero que eles possam recuperá-lo”, pensou Loren, „senão esta viagem vai ficar muito dispendiosa, e vai levar um bom tempo até que possamos estudar os scorps novamente.” Sentia-se orgulhoso de si mesmo ante avaliação tão calma da situação, considerando-se as circunstâncias. Alguma coisa roçou em sua perna direita e, num reflexo automático, tentou chutá-la. Embora aquilo apertasse desconfortavelmente a sua pele, sentiu-se mais aborrecido do que alarmado. Estava flutuando em segurança, a onda gigante tinha passado e nada poderia feri-lo agora. Ele chutou de novo, mais cautelosamente. Ao fazê-lo, sentiu o mesmo emaranhado na outra perna. E agora não se tratava mais de um inofensivo roçar, a despeito da flutuabilidade do colete salva-vidas, alguma coisa o puxava para o fundo. Foi nesse momento que Loren Lorenson teve o seu primeiro momento de real pânico, quando se lembrou subitamente dos tentáculos tateantes do pólipo gigante. Entretanto, deviam ser macios, e este era obviamente algum fio no cabo. É claro! Era o cabo umbilical do trenó afundando.
Ele ainda poderia ter se soltado, se não tivesse engolido um bocado de água de uma onda inesperada. Tossindo e sufocando, tentou limpar os pulmões ao mesmo tempo que chutava o cabo. Subitamente, aquela fronteira vital entre o ar e a água, entre a vida e a morte, encontrava-se a menos de um metro acima de sua cabeça e não havia meio de alcançá-la. Numa hora dessas um homem não pensa em outra coisa senão em sua própria sobrevivência. Não houve lembranças, nenhum arrependimento de sua vida passada, nem mesmo um efêmero vislumbre de Mirissa. E quando percebeu que estava tudo acabado, não sentiu medo. Seu último pensamento consciente foi um sentimento de pura raiva. Raiva de que tivesse viajado cinqüenta anos-luz apenas para encontrar um fim tão trivial e tão pouco heróico. E assim Loren Lorenson morreu pela segunda vez, nos baixios mornos do mar de Thalassa. Não tinha aprendido com a experiência, já que sua primeira morte fora muito mais suave, duzentos anos atrás.
V — A SÍNDROME DO BOUNTY
31. PETIÇÃO
Embora o comandante Sirdar Bey negasse ter um miligrama de superstição em seu corpo, ele sempre começava a se preocupar quando as coisas corriam bem demais. Até agora tudo em Thalassa parecera bom demais para ser verdade, tudo correndo de acordo com os planos mais otimistas. O escudo estava sendo construído de acordo com o cronograma e não se tinham registrado problemas que valessem a pena mencionar. Agora, no espaço de vinte e quatro horas, tudo acontecia… É claro que podia ter sido muito pior. O tenente-comandante Loren Lorenson tivera uma sorte tremenda, graças àquele garoto (teriam que fazer alguma coisa por ele…). De acordo com os médicos, fora por pouco. Mais alguns minutos e o dano cerebral teria sido irreversível. Aborrecido por ter deixado sua atenção desviar-se do problema imediato, o comandante leu a mensagem que agora conhecia de cor:
„REDE DA NAVE: COMANDANTE DE: ANON SEM DATA, SEM HORA PARA: O „Senhor: um certo número de nós deseja fazer a seguinte proposta que apresentamos para sua mais séria consideração. Sugerimos que nossa missão termine aqui em Thalassa. Todos os seus objetivos serão realizados sem os riscos adicionais envolvidos no prosseguimento da viagem até Sagan 2.”
„Reconhecemos plenamente que isto envolveria problemas com a população existente, mas acreditamos que eles possam ser solucionados com a tecnologia que possuímos. Especificamente, o uso de engenharia tectônica a fim aumentar a área disponível.”
„Conforme os regulamentos, Seção 14, Parág. 24 (a), nós respeitosamente requisitamos que o Conselho da nave se reúna para discutir esta questão, assim que for possível.” — E então, comandante Malina? Embaixador Kaldor? Algum comentário? Os dois convidados aos aposentos espaçosos mas mobiliados de modo simples do comandante olharam um para o outro. Então Kaldor deu um aceno de cabeça quase imperceptível para o segundo na linha de comando e confirmou sua abdicação quanto à iniciativa em responder, tomando outro gole deliberadamente lento do excelente vinho thalassiano que seus anfitriões haviam fornecido. O comandante Malina, que se sentia mais à vontade com as máquinas do que com as pessoas, olhou para o formulário de computador com uma expressão tristonha.