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Manter o sorriso estava começando a deixar seus lábios doloridos.

— Você deveria ter perguntado, Elayne. Você sempre sai fazendo as coisas sem perguntar, sem pensar. Já passou da hora de se dar conta de que, se você cair em um buraco por ter saído correndo às cegas, sua velha babá não vai aparecer para pegá-la no colo e lavar seu rosto. — À última palavra, os olhos de Elayne estavam tão arregalados quanto uma xícara de chá, e os dentes à mostra pareciam prontos para tentar uma mordida.

Birgitte as conteve com as mãos, inclinando-se para a frente e sorrindo tanto que parecia envolta até o pescoço em alegria.

— Se vocês não pararem com isso, vou enfiar a cabeça das duas no rio para dar uma esfriada. Vocês estão se comportando feito garçonetes de Shago com vasca hibernal!

Rostos suados congelados com expressões simpáticas, as três saíram caminhando em direções diferentes, se afastando uma da outra para o mais longe que o navio permitia. Quase ao pôr do sol, Nynaeve ouviu Ragan dizer que ela e as demais deviam estar bastante aliviadas por deixarem Samara, pela forma como praticamente gargalhavam uma no ombro da outra, e os outros homens pareciam concordar, mas o restante das mulheres a bordo as observava com rostos demasiado inexpressivos. Elas identificavam problemas de cara.

Pouco a pouco, no entanto, aquele problema acabou se dissipando. Nynaeve não tinha certeza de como. Talvez os semblantes agradáveis que Elayne e Birgitte passaram a estampar tenham contaminado as duas, mesmo a contragosto. Talvez o ridículo de tudo aquilo, de tentar manter um sorriso amigável no rosto enquanto trocavam palavras amargas, tenha ficado mais e mais evidente. O que quer que fosse, ela não podia reclamar das consequências. Devagarinho, dia a dia, as palavras e os tons de voz começaram a condizer com os sorrisos, e, vez ou outra, uma delas parecia até constrangida ao se lembrar de como andara se comportando. Ninguém pensou em pedir desculpas, claro, o que Nynaeve entendia bem. Se estivesse sendo tão tola e perversa quanto as duas, certamente não iria querer lembrar ninguém disso.

As crianças também tiveram seu papel na restauração do equilíbrio de Elayne e Birgitte, embora esse processo tenha começado quando Nynaeve tratou das feridas dos homens naquela primeira manhã, no rio. Ela buscou sua algibeira cheia de ervas e preparou emplastros e unguentos e fez curativos em cortes. Essas feridas a deixavam com raiva suficiente para Curar — doenças e machucados sempre despertavam sua raiva —, e ela fez isso em alguns dos piores casos, apesar de ter precisado tomar cuidado. Machucados desaparecendo desencadeariam conversas, e só a Luz sabia o que Neres faria se pensasse que havia uma Aes Sedai a bordo. Era muito provável que mandasse um homem em um bote a Amadícia na calada da noite para tentar fazê-las serem presas. Na verdade, a notícia poderia ter feito alguns refugiados se jogarem no rio.

No caso de Uno, por exemplo, ela esfregou um pouco de óleo de raiz-marda no ombro ferido, pincelou um bocadinho de pomada de cura-tudo no corte fresco que descia pelo rosto — não havia por que gastar muito em nenhum dos dois casos — e enfaixou a cabeça até ele mal conseguia mexer a mandíbula, tudo isso antes de Curá-lo. Quando o homem arquejou e se debateu, ela disse, com rispidez:

— Não se comporte como um bebê. Eu nunca pensei que uma dorzinha de nada fosse incomodar um homem tão grande e forte. Agora trate de não mexer em nada disso. Se encostar um dedo nelas nos próximos três dias, vou lhe dar uma dose de algo que você não vai esquecer tão cedo.

O homem aquiesceu devagar, encarando-a com tanta confusão que ficou claro que não sabia o que ela tinha feito. Se ele percebesse, quando enfim retirasse as bandagens, com sorte ninguém mais se lembraria exatamente de quão feio era o corte, e Uno deveria ter juízo suficiente para manter a boca fechada.

Depois que Nynaeve começou, foi natural continuar e tratar o restante dos passageiros. Poucos refugiados não apresentavam arranhões e machucados, e algumas das crianças demonstravam sinais de febre ou vermes. Essas, ela podia Curar sem preocupações. Crianças sempre faziam um estardalhaço quando tomavam doses de qualquer coisa que não tivesse gosto de mel. Se contassem para as mães que tinham sentido coisas estranhas, era porque crianças tinham imaginação fértil.

Nynaeve nunca se sentira muito confortável com crianças. Verdade, queria ser mãe dos filhos de Lan. Parte dela queria. Crianças conseguiam fazer bagunça a partir de nada. Pareciam ter o hábito de fazer o contrário do ordenado assim que se virava as costas, só para verem como os adultos reagiriam. Contudo, ela se viu acariciando o cabelo escuro de um garoto que não passava de sua cintura e que lhe encarava feito uma coruja com reluzentes olhos azuis. Eram muito parecidos com os olhos de Lan.

De início, Elayne e Birgitte se juntaram a ela só para ajudar a manter a ordem, mas, de um jeito ou de outro, também acabaram sendo atraídas para junto das crianças. Estranhamente, Birgitte não parecia nem um pouco desajeitada com um garoto de três ou quatro anos agarrado de cada lado da cintura e uma roda de crianças lhe cercando enquanto cantava alguma música boba sobre animais dançantes. E Elayne distribuía o conteúdo de um saco, balas doces vermelhas. Só a Luz sabia onde conseguira aquilo, e por quê. Não demonstrou a menor culpa quando Nynaeve a flagrou colocando uma delas na boca. Apenas sorriu, puxou com delicadeza o dedo de uma garotinha de dentro da boca e o substituiu por outra bala. As crianças riam como se estivessem reaprendendo a fazer aquilo, e se aconchegavam com tanta facilidade nas saias de Nynaeve, Elayne ou Birgitte quanto nas das mães. Era muito difícil manter qualquer mau humor naquelas circunstâncias. Nynaeve foi incapaz de se obrigar a fazer mais que bufar, e discretamente, quando, no segundo dia, Elayne retomou seu estudo do a’dam na privacidade da cabine. A mulher parecia mais convencida do que nunca de que o bracelete, o colar e a correia criavam uma forma estranha de união. Nynaeve chegou até a sentar uma ou duas vezes com ela. A mera visão daquele objeto vil era o bastante para deixá-la em condições de abraçar saidar e acompanhar o estudo.

As histórias dos refugiados vieram à tona, claro. Famílias separadas, perdidas ou mortas. Fazendas, lojas e ofícios arruinados conforme as ondas de problemas do mundo se espalharam, comprometendo o comércio. As pessoas não tinham como comprar quando não podiam vender. O Profeta fora apenas o último tijolo que fez o eixo da carroça se partir. Nynaeve não falou nada quando viu Elayne entregar um marco de ouro para um sujeito de cabelo grisalho que esfregou a testa enrugada e tentou beijar sua mão. Ela logo aprenderia como o ouro sumia rápido. Além do mais, a própria Nynaeve também ofertara algumas moedas. Bem, talvez mais que só algumas.

Todos os homens, exceto dois, eram grisalhos ou quase calvos, com rostos coriáceos e mãos cheias de calos do trabalho. Os mais jovens que não haviam sido arregimentados pelo Profeta foram incorporados ao exército. Os que recusaram a uma ou outra coisa tinham sido enforcados. A dupla mais jovem — pouco mais que garotos, na verdade, e Nynaeve duvidava que algum deles já se barbeasse com regularidade — tinha expressões assustadas, e ambos se encolhiam se um dos shienaranos olhasse para eles. Às vezes, os homens mais velhos falavam sobre recomeçar, encontrar um pedaço de terra para arar ou retomar seus comércios, mas o tom de suas vozes indicava que se tratava mais de blefes e bravatas do que de esperanças reais. Na maior parte do tempo, conversavam calmamente sobre suas famílias: uma esposa perdida, filhos e filhas perdidos, netos perdidos. Todos pareciam perdidos. Na segunda noite, um sujeito com orelha de abano que parecera o mais entusiasmado em meio a um grupo triste simplesmente desapareceu. Quando o sol surgiu, o homem havia sumido. Podia ter nadado até a margem. Nynaeve esperava que sim.

Foram as mulheres, porém, que conquistaram seu coração. Não tinham mais perspectivas que os homens, nem mais certezas, mas a maioria carregava fardos maiores. Nenhuma estava acompanhada do marido ou mesmo sabia se ele ainda estava vivo, mas as responsabilidades que lhes pesavam nos ombros também as fazia seguir em frente. Nenhuma mãe determinada era capaz de desistir. No entanto, até as que não tinham filhos pretendiam ir em busca de um futuro. Todas tinham pelo menos uma nesga da esperança que os homens apenas fingiam ter. Três delas mexeram especialmente com Nynaeve.