Girando para ficar de frente para elas, Rand agarrou saidin e se encheu do Poder Único. O Poder era como a vida inflando dentro dele, como se estivesse dez ou até cem vezes mais vivo. A mácula do Tenebroso também o preencheu, morte e podridão como vermes rastejando em sua boca. Era uma torrente que ameaçava varrê-lo, uma inundação furiosa contra a qual precisava lutar a cada instante. Rand já estava quase acostumado àquilo, e, ao mesmo tempo, jamais se acostumaria. Queria se agarrar para sempre à doçura de saidin, e também queria vomitar. Enquanto isso, aquele dilúvio tentava arrancar a carne de seu corpo e transformar seus ossos em cinzas.
A mácula o enlouqueceria, se o Poder não o matasse primeiro. Os dois travavam uma corrida. Desde a Ruptura do Mundo, o destino de todos os homens capazes de canalizar havia sido a loucura. Desde aquele dia em que Lews Therin Telamon, o Dragão, e seus Cem Companheiros selaram a prisão do Tenebroso em Shayol Ghul. A última contraexplosão gerada pelo aprisionamento maculara a metade masculina da Fonte Verdadeira, e os homens capazes de canalizar — os homens capazes de canalizar que haviam enlouquecido — quase tinham destruído o mundo.
Rand se enchera do Poder… e não conseguia dizer qual das duas mulheres fizera o mesmo. Ambas olhavam para ele com cara de quem não tinha feito nada, uma sobrancelha arqueada de forma quase idêntica, com ar de curiosidade divertida. Qualquer uma das duas, ou até ambas, poderia estar abraçando a metade feminina da Fonte naquele exato instante, e ele jamais saberia quem.
Claro que um golpe de vara entre os ombros não era o estilo de Moiraine, que sempre encontrava outros meios, mais sutis, de castigá-lo, e que normalmente acabavam sendo mais dolorosos. Porém, mesmo tendo certeza de que havia sido Egwene, Rand não fez nada. Provas. Seu pensamento viajou pelo limiar do Vazio. Ele flutuou junto, em um vácuo, o pensamento e as emoções, até mesmo a raiva, distantes. Não vou fazer nada sem provas. Desta vez, não vou deixar que me provoquem. Aquela não era a Egwene com quem ele crescera. Ela se tornara parte da Torre desde que Moiraine a enviara para lá. De novo Moiraine. Sempre Moiraine. Às vezes, ele desejava já ter se livrado dela. Só às vezes?
Rand se concentrou na mulher.
— O que quer de mim? — Sua voz soou fria e sem emoção até para os próprios ouvidos. Dentro dele, o Poder trovejava. Egwene contara que, para uma mulher, tocar saidar, a metade feminina da Fonte, era como se sentir abraçada. Para um homem, todas as vezes, era uma guerra impiedosa. — E nem venha falar de novo de carroções, irmãzinha. Costumo descobrir suas intenções bem depois de você já ter colocado tudo em prática.
Como era de se esperar, a Aes Sedai franziu o cenho. Ela decerto não estava habituada a que se dirigissem a ela daquela maneira, não por nenhum homem, nem mesmo o Dragão Renascido. Ele mesmo não fazia ideia de onde aquele “irmãzinha” saíra. Ultimamente, as palavras pareciam brotar em sua mente. Um quê de loucura, talvez. Certas noites, Rand ficava acordado até as primeiras horas do dia pensando sobre aquilo. Mas, dentro do Vazio, aquelas pareciam ser preocupações distantes.
— Precisamos conversar a sós. — Egwene lançou um olhar frio para o harpista.
Jasin Natael, como o sujeito se chamava ali, estava recostado nas almofadas posicionadas em uma das paredes sem janelas, onde tocava com tranquilidade a harpa aninhada entre os joelhos, cujo braço superior dourado fora entalhado no formato das criaturas dos antebraços de Rand. Dragões, segundo os Aiel. Rand tinha apenas suspeitas sobre onde Natael conseguira o instrumento. O músico era um homem de cabelos escuros e meia-idade que, em qualquer outro lugar que não o Deserto Aiel, seria considerado mais alto que a média. Seu casaco e suas calças eram de uma seda azul-escura apropriada para uma corte real, com bordados elaborados em fios de ouro na gola e nas mangas, tudo abotoado ou amarrado, apesar do calor. As belas vestimentas destoavam da capa de menestrel estendida logo ao lado. Era uma boa capa, mas toda coberta com centenas de remendos de quase a mesma quantidade de cores, todos costurados de modo que esvoaçassem ao menor sinal de uma brisa. A capa o identificava como um artista dos campos, um malabarista e acrobata, um músico e contador de histórias que perambulava de aldeia em aldeia. Não era um homem para trajar seda, por certo, mas o músico era vaidoso e parecia completamente imerso na música.
— Você pode dizer o que quiser na frente de Natael — disse Rand. — Afinal, ele é o menestrel do Dragão Renascido.
Se realmente fosse importante tratar do assunto em segredo, Egwene faria pressão e ele pediria para Natael sair, embora não gostasse de perder o músico de vista.
Egwene fungou alto e arrumou o xale nos ombros.
— Sua cabeça está inchada feito um melão passando do ponto, Rand al’Thor — disse ela de modo impassível, como se fizesse uma constatação.
Fora do Vazio, a raiva fervilhava. Não pelo que ela dissera. Mesmo quando os dois ainda eram crianças, Egwene sempre tivera o hábito de implicar com ele, e normalmente nem considerava se Rand merecia ou não. Nos últimos tempos, porém, ele andava com a impressão de que ela passara a trabalhar com Moiraine, tentando desestabilizá-lo para que a Aes Sedai pudesse manipulá-lo como quisesse. Quando eram mais jovens, antes de descobrirem o que ele era, Rand e Egwene chegaram a pensar que, um dia, acabariam se casando. E agora ela estava do lado de Moiraine, contra ele.
Com a expressão rígida, Rand falou com mais rispidez do que pretendia.
— Me diga o que quer, Moiraine. Me diga aqui e agora, ou deixe a questão de lado até que eu tenha tempo para você. Ando muito ocupado.
Era uma mentira deslavada. Rand passava a maior parte do tempo treinando espadas com Lan, lanças com Rhuarc, ou aprendendo luta corporal com ambos. Mas se pudesse intimidá-la de qualquer maneira, naquele momento, faria isso. Natael podia ouvir tudo. Quase tudo. Desde que Rand soubesse o tempo todo onde ele estava.
Moiraine e Egwene franziram o rosto, mas pelo menos a verdadeira Aes Sedai pareceu perceber que, desta vez, ele não recuaria. Contraindo os lábios, ela olhou para Natael, que ainda parecia absorto em sua música, e tirou da bolsa um espesso embrulho de seda cinza.
Ao desdobrá-lo, Moiraine pôs o conteúdo na mesa: um disco do tamanho da mão de um homem, metade absolutamente negro, metade completamente branco, as duas cores se encontrando em uma linha sinuosa que delineava duas lágrimas amalgamadas. Aquele fora o símbolo das Aes Sedai antes da Ruptura, mas o disco era mais que isso. Apenas sete deles haviam sido feitos, os selos da prisão do Tenebroso. Ou melhor, cada um era a âncora de um daqueles selos. A mulher sacou do cinturão sua faca, cujo cabo era envolto em fios de prata, e raspou com delicadeza a extremidade do disco, fazendo cair uma minúscula lasca negra.
Mesmo encerrado no Vazio, Rand ficou sem fôlego. O próprio vácuo estremeceu e, por um instante, o Poder ameaçou sobrepujá-lo.
— É uma cópia? Uma falsificação?
— Encontrei na esplanada lá embaixo — respondeu Moiraine. — Mas é verdadeiro. Igual ao que eu trouxe comigo de Tear. — Pelo tom de voz, ela poderia estar dizendo que queria almoçar sopa de ervilha. Egwene, por outro lado, apertou o xale em torno do corpo, como se sentisse frio.
Esvaindo-se pela superfície do Vazio, o próprio Rand sentia-se agitado pelo medo. Era difícil abrir mão de saidin, mas ele se obrigou a isso. Se perdesse a concentração, o Poder talvez o destruísse ali mesmo, e queria toda a atenção voltada para o assunto em questão. Ainda assim, mesmo com a mácula, era uma perda.
Aquela lasca repousando sobre a mesa era impossível. Todos os discos eram feitos de cuendillar ou pedra-do-coração, e nada feito de cuendillar podia ser quebrado, nem mesmo pelo Poder Único. Qualquer força usada contra aquele material só o tornava ainda mais resistente. A fabricação de pedra-do-coração se perdera na Ruptura do Mundo, mas os objetos feitos daquele material que foram construídos durante a Era das Lendas ainda existiam. Até o mais frágil dos vasos, mesmo que a Ruptura o tivesse afundado nas profundezas do oceano ou enterrado debaixo de uma montanha. Três dos sete discos já estavam quebrados, claro, mas fora preciso muito mais do que uma faca para tal.