Nynaeve não entendeu bem essa última interação. Nem o atrevimento daqueles homens, achando que podiam falar em código — e bem na cara dela, que não poderia compreender o assunto. Em todo caso, já estava farta deles.
— Que bom que ele não precisa de um caçador de ladrões — ironizou Juilin, olhando de soslaio para Siuan e demonstrando claro desconforto. Não superara o choque de ter descoberto o nome dela. Nynaeve não tinha certeza se ele assimilara que Siuan fora estancada e não era mais o Trono de Amyrlin. Ele certamente parecia achá-la inquietante. — Assim, posso sentar e conversar. Vi vários sujeitos que parecem propensos a desabafar com uma caneca de cerveja.
— Ele praticamente me ignorou — disse Elayne, incrédula. — Pouco me importa qual é o problema entre ele e mamãe. Ele não tem direito de… Bem, mais tarde eu cuido de Lorde Gareth Bryne. Preciso conversar com Min, Nynaeve.
Nynaeve fez menção de seguir Elayne quando a garota partiu apressada em direção àquele corredor que levava às cozinhas — Min lhes daria respostas diretas —, mas Siuan segurou-a pelo braço com punhos de ferro.
A Siuan Sanche que curvara a cabeça de maneira submissa perante as Aes Sedai tinha sumido. Ninguém ali usava o xale. Ela não levantou a voz em nenhum momento. Não era preciso. A mulher encarou Juilin de um jeito que o deixou apavorado.
— Preste atenção às perguntas que faz, caçador de ladrões, ou vai ser obrigado a arrancar as próprias tripas. — Aqueles frios olhos azuis saltaram para Birgitte e Marigan. A boca de Marigan se retorceu como se ela tivesse provado algo ruim, e até Birgitte piscou. — Vocês duas vão achar uma Aceita chamada Theodrin e pedir a ela algum lugar para dormir hoje à noite. Aquelas crianças parecem que já deveriam estar na cama. E então? Mexam esses pés! — Antes que as duas tivessem dado um só passo, e com Birgitte se movendo tão rápido quanto Marigan, talvez até mais, a mulher investiu contra Nynaeve: — Para você eu tenho algumas perguntas. Mandaram você cooperar, e eu sugiro que coopere, caso saiba o que é bom para a saúde.
Nynaeve foi arrastada. Antes que desse conta, Siuan já estava subindo com ela às pressas por degraus instáveis com um corrimão improvisado de madeira rústica e puxando-a por um corredor de piso grosseiro até um cubículo com duas camas apertadas afixadas à parede, uma em cima da outra. Siuan sentou-se no único banco e acenou para que Nynaeve se acomodasse na cama de baixo. Ela preferiu ficar de pé, talvez apenas para mostrar que não seria forçada a nada. Não havia muito mais no quarto. Um lavatório com um tijolo escorando uma das pernas abrigava uma bacia e um jarro lascado. Alguns vestidos pendiam de pregadores de roupa, e o que aparentava ser um catre repousava enrolado a um canto. Nynaeve caíra bastante de status em um só dia, mas Siuan caíra bem mais do que ela seria capaz de imaginar. Não achava que teria tantos problemas com a mulher. Mesmo que Siuan ainda fosse dona dos mesmos olhos.
Siuan fungou.
— Você é quem sabe então, garota. O anel. Ele não exige canalização?
— Não. Você me ouviu dizer a Sheriam…
— Qualquer pessoa pode usar? Uma mulher que não sabe canalizar? Um homem?
— Um homem, talvez. — Ter’angreal que não necessitavam do Poder costumavam funcionar com homens e mulheres. — Com qualquer mulher, sim.
— Então você vai me ensinar a usá-lo.
Nynaeve arqueou uma sobrancelha. Aquilo poderia ser uma arma para conseguir o que queria. Se não, ainda tinha outra. Talvez.
— Elas estão sabendo disto? Toda a conversa foi sobre mostrar a elas como funcionava. Não mencionaram você em momento algum.
— Elas não sabem. — Siuan não parecia nem um pouco abalada. Até sorriu, e de um jeito nada agradável. — E não vão saber. Ou vão descobrir que você e Elayne têm se passado por irmãs plenas desde que deixaram Tar Valon. Moiraine pode até estar deixando Egwene se safar, porque eu aposto que ela está contando a mesma mentira, mas Sheriam, Carlinya…? Elas vão fazê-la gemer feito uma porca parindo antes de se darem por satisfeitas. Bem antes.
— Isso é ridículo. — Nynaeve se deu conta de que estava bem na beira da cama. Não se lembrava nem de ter sentado. Thom e Juilin controlariam as línguas. Ninguém mais sabia. Ela precisava falar com Elayne. — Nós não fingimos nem fizemos nada parecido.
— Não minta para mim, garota. Se eu precisasse de confirmação, seus olhos já me deram. Seu estômago está dando cambalhotas, não está?
Com certeza estava.
— Claro que não. Se eu ensinar alguma coisa a você, é porque quero. — Não deixaria aquela mulher intimidá-la. O último vestígio de misericórdia se esvaiu. — Se eu ensinar, vou querer algo em troca. Estudar você e Leane. Quero saber se uma estancada pode ser Curada.
— Não pode — respondeu Siuan, sem rodeios. — Agora…
— Qualquer coisa que não seja a morte deve poder.
— “Deve poder” não é “pode”, garota. Prometeram para mim e para Leane que nos deixariam em paz. Se você quer saber o que acontece com qualquer pessoa que nos incomoda, fale com Faolain ou Emara. Elas não foram as primeiras nem as piores, mas foram as que passaram mais tempo chorando.
A outra arma. O quase pânico a apagara de sua cabeça. Se é que essa arma existia. Uma olhadela.
— O que Sheriam diria se soubesse que você e Leane não estavam nem um pouco perto de sair no tapa? — Siuan apenas a encarou. — Elas acham que vocês estão domesticadas, não é? Quanto mais você explode com alguém que não pode revidar, mais elas entendem como uma prova quando você faz de tudo para obedecer toda vez que uma Aes Sedai tosse. Um pouco de servilismo foi suficiente para fazê-las esquecer que vocês duas trabalharam juntas por anos? Ou vocês as convenceram de que ser estancadas transformou tudo, não só o rosto? Quando as Aes Sedai descobrirem que têm tramado pelas costas delas, que estão sendo manipuladas, vocês vão uivar mais alto que qualquer porca. — Nem uma piscada. Siuan não perderia a cabeça, deixando quaisquer confissões escaparem. Porém, houvera alguma coisa naquele breve olhar. Nynaeve tinha certeza. — Eu quero estudar você, e Leane, sempre que eu quiser. E Logain. — Talvez pudesse aprender algo com ele também. Homens eram diferentes. Seria como analisar o problema por outro ângulo. Não que fosse Curá-lo, mesmo que descobrisse como. Rand canalizar era necessário, mas ela não estava disposta a deixar outro homem no mundo capaz de manejar o Poder. — Se não, você pode esquecer o anel e Tel’aran’rhiod. — O que Siuan queria lá? Provavelmente, só revisitar algo que ao menos se parecesse com ser uma Aes Sedai. Nynaeve esmagou aquele resquício de misericórdia que se acendeu nela. — E se você fizer qualquer alegação de termos fingido ser Aes Sedai, não terei outra opção que não contar sobre você e Leane. Elayne e eu podemos até ficar desconfortáveis até a verdade aparecer, mas isso vai acontecer, e vai fazer vocês chorarem tanto quanto Faolain e Emara juntas.
O silêncio se estendeu. Como a outra mulher conseguia parecer tão calma? Nynaeve sempre pensara que tinha a ver com o fato de ela ser Aes Sedai. Sua boca estava seca, e era a única parte do corpo assim. Se estivesse errada, se Siuan estivesse disposta a pagar para ver, ela sabia quem estaria chorando.
Por fim, Siuan resmungou:
— Espero que Moiraine tenha conseguido manter Egwene mais sob controle que isso. — Nynaeve não entendeu, mas mal teve tempo para pensar a respeito. No instante seguinte, a outra mulher já estava se inclinando para a frente com a mão estendida. — Você guarda os meus segredos e eu guardo os seus. Me ensine a usar o anel e poderá estudar tudo o que quiser sobre estancamentos e amansamentos.