Ao menos os trens com vagões cheios de grãos começavam a chegar de Tear com certa regularidade. Um povo com fome poderia se revoltar. Rand queria ficar satisfeito com a alegria por aquela gente não estar mais faminta, mas ali estava ele. Havia menos bandidos. E a guerra civil ainda não recomeçara. Ainda. Mais boas notícias. Precisava se assegurar de que as coisas continuariam assim antes que fosse embora. Uma centena de assuntos a tratar antes que pudesse ir atrás de Sammael. Dos chefes em quem realmente confiava, daqueles que haviam marchado desde Rhuidean ao seu lado, só Rhuarc e Bael permaneciam. Mas se os quatro clãs que aderiram a ele depois não fossem confiáveis para marchar até Tear, seriam confiáveis à solta em Cairhien? Indirian e os demais tinham-no reconhecido como Car’a’carn, mas sabiam tão pouco de Rand quanto Rand sabia deles. A mensagem daquela manhã poderia ser um problema. Berelain, Primeira de Mayene, só estava a algumas centenas de milhas ao sul da cidade, vindo se juntar a ele com um pequeno exército. Não fazia ideia de como ela havia conseguido liderá-los através de Tear. Estranhamente, a carta da mulher perguntara se Perrin estava com ele. Não havia dúvida de que Berelain temia que Rand se esquecesse do pequeno país dela, caso não o lembrasse. Seria quase um prazer vê-la enfrentar os cairhienos, a última em uma longa lista de Primeiras que haviam conseguido evitar que Tear engolisse seu país ao jogar o Jogo das Casas. Se ele a pusesse no comando ali, talvez… Rand levaria Meilan e os outros tairenos consigo quando chegasse a hora. Se a hora algum dia chegasse.
Nada disso era melhor do que o que o aguardava lá dentro. Rand bateu no cachimbo para tirar a borra e apagou as últimas centelhas do tabaco sob as botas. Desnecessário correr o risco de atear fogo ao jardim. As chamas se elevariam feito uma tocha. A seca. O clima não natural. Reparou que estava rosnando baixinho. Primeiro, cuidar do que ele sabia que podia fazer algo a respeito. Rand precisou se esforçar para suavizar sua expressão antes de entrar.
Asmodean, tão bem vestido quanto qualquer lorde, babados de renda no pescoço, dedilhava a um canto uma canção tranquilizadora, recostado nas paredes sóbrias e escuras como se estivesse apenas passando o tempo. Todos os demais que estavam sentados pularam da cadeira com a aparição de Rand e tornaram a sentar após seu gesto incisivo. Meilan, Torean e Aracome ocupavam cadeiras entalhadas em ouro em uma das laterais do comprido tapete vermelho e dourado, cada um com um jovem lorde taireno às costas, espelhando os cairhienos, do outro lado. Dobraine e Maringil também tinham cada qual um lorde às costas, ambos com a parte frontal da cabeça raspada e branca de talco, como a de Dobraine. Com o rosto pálido, Selande estava de pé junto ao ombro de Colavaere e estremeceu quando Rand olhou para ela.
Controlando a própria expressão, Rand cruzou rápido todo o tapete até sua cadeira. A própria cadeira lhe dava motivo para precisar se controlar. Era um novo presente de Colavaere e dos outros dois, no que imaginavam que fosse o estilo taireno. Rand devia gostar do espalhafatoso estilo taireno. Ele governava Tear e mandara os tairenos para Cairhien. Dragões entalhados sustentavam-na, todos em vermelho e dourado cintilante com esmaltes e douraduras, e grandes pedras do sol fazendo as vezes dos olhos dourados. Outros dois compunham os braços, e vários mais se erguiam no alto espaldar. Incontáveis artesãos deviam ter ficado sem dormir desde a chegada de Rand para dar conta de fabricar o objeto. Sentado ali, sentia-se um idiota. A música de Asmodean mudara. Passara a ser um som grandioso, uma marcha triunfal.
Ainda assim, havia uma cautela extra nos escuros olhos cairhienos que o observavam, uma cautela que se refletia nos tairenos. A sensação também já estivera ali antes de ele fazer o intervalo. Na tentativa de bajulá-lo, talvez tivessem cometido um erro que só agora estavam percebendo. Todos haviam tentado ignorar quem ele era, fingir que não passava de um jovem lorde qualquer que os conquistara e que podiam lidar e manipular. Aquela cadeira — aquele trono — escancarou quem e o que Rand era de fato.
— Os soldados estão se deslocando conforme o previsto, Lorde Dobraine? — O som da harpa se dissipou tão logo ele abriu a boca, Asmodean parecendo concentrado apenas em acariciá-la.
O homem de pele coriácea abriu um sorriso soturno.
— Estão, milorde Dragão. — Nada além disso.
Rand não alimentava ilusões de que Dobraine gostasse mais dele do que os outros ou que não fosse tentar tirar algum proveito da maneira que pudesse, mas Dobraine parecia mesmo disposto a manter o juramento que fizera. As barras coloridas que lhe desciam pela parte frontal do casaco estavam desgastadas pelo roçar da armadura peitoral que fora afivelada tantas vezes por cima delas.
Maringil se moveu para a beira do assento, esguio feito um chicote e alto para os padrões cairhienos, o cabelo branco quase encostando nos ombros. A frente da cabeça não era raspada, e o casaco, com listras que iam quase até o joelho, não exibia desgastes.
— Precisamos daqueles homens aqui, milorde Dragão. — Seus olhos de falcão piscaram para o trono dourado e tornaram a se concentrar em Rand. — Ainda há muitos bandidos à solta por estas terras. — Ele tornou a mudar de posição de modo que não precisasse olhar para os tairenos. Meilan e os outros dois deram um sorriso discreto.
— Já enviei Aiel para caçar bandidos — avisou Rand.
Eles haviam mesmo recebido ordens para executar quaisquer salteadores que lhes cruzassem o caminho. E para não desviar de rota para encontrá-los. Nem os Aiel eram capazes de fazer isso e ainda se deslocar rápido.
— Fiquei sabendo que Cães de Pedra mataram quase duzentos perto de Morelle, três dias atrás. — Isso ficava perto da fronteira mais ao sul que os cairhienos haviam reivindicado poucos anos antes, na metade do caminho até o rio Iralell. Não precisava contar a eles que esses Aiel, àquela altura, já podiam estar até no rio. Era um povo capaz de cobrir longas distâncias mais depressa que cavalos.
Maringil franziu o cenho, desconfortável, e insistiu:
— Há mais uma razão: metade de nossas terras a oeste do Alguenya está nas mãos de Andor. — Ele hesitou. Todos sabiam que Rand crescera em Andor, e dezenas de boatos afirmavam que ele era filho de uma ou outra Casa Andoriana, talvez até filho da própria Morgase, exilado porque sabia canalizar ou fugido antes que conseguissem amansá-lo. O homem esguio prosseguiu como se caminhasse na ponta dos pés por entre adagas, vendado e descalço. — Morgase ainda não parece estar avançando mais, mas o que ela já tomou precisa ser reconquistado. Seus arautos já proclamaram até o direito dela sobre… — Maringil parou de repente. Ninguém ali sabia para quem Rand queria designar o Trono do Sol. Talvez fosse para Morgase.
O olhar sombrio de Colavaere fez Rand analisar a situação de novo. Ela falara pouco naquele dia. Não falaria mais até descobrir por que o rosto de Selande estava tão branco.
De repente, Rand se cansou de tantos nobres hesitantes e de todas aquelas manobras do Daes Dae’mar.
— Vou cuidar das reivindicações andorianas a Cairhien quando estiver pronto. Aqueles soldados vão para Tear. Vocês vão seguir o bom exemplo de obediência do Grão-lorde Meilan, e não quero mais ouvir falar no assunto. — Rand se virou para os tairenos. — O seu é um bom exemplo, não é, Meilan? E o seu, Aracome? Se amanhã eu for embora, não vou me deparar com mil Defensores da Pedra acampados dez milhas ao sul e que já deveriam estar a caminho de Tear há dois dias, vou? Nem com dois mil soldados de Casas Tairenas?
Os sorrisos foram murchando a cada pergunta. Meilan ficou imóvel, os olhos escuros brilhando, e o rosto estreito de Aracome ficou pálido, embora fosse difícil dizer se de raiva ou de medo. Torean secou o rosto encaroçado com um lenço de seda que puxou da manga. Rand estava na liderança de Tear, e pretendia liderar; Callandor enterrada no Coração da Pedra comprovava o fato. Por isso eles não tinham reclamado sobre Rand enviar soldados tairenos a Cairhien. Pretendiam conseguir novas terras, talvez reinos, ali, bem longe de sua liderança.