— O que é que você quer me mostrar, Moiraine? — indagou Rand, impaciente, atando as rédeas de Jeade’en a uma das rodas do último carroção da fila.
A Aes Sedai estava na ponta dos pés, espiando pela lateral do carroção um par de barris familiares. A não ser que estivesse enganado, eles armazenavam os dois selos de cuendillar enrolados em lã para melhor proteção, já que não eram mais inquebráveis. Ali, ele sentia com força a mácula do Tenebroso. Quase parecia vir dos barris, um sopro débil, como se algo estivesse apodrecendo em algum lugar escondido. — Aqui é seguro — murmurou Moiraine.
Ela ergueu as saias com graciosidade e andou até o início da fila de carroções. Lan seguiu logo atrás, como um lobo parcialmente domesticado, o manto que lhe pendia às costas em uma profusão de cores que se misturavam à paisagem.
Rand a fuzilou com os olhos.
— Ela lhe explicou do que se trata, Egwene?
— Só que você precisava ver uma coisa. Que você tinha que vir até aqui de qualquer jeito.
— Você precisa confiar nas Aes Sedai — advertiu Aviendha, quase com a mesma neutralidade, mas com um quê de dúvida.
Mat riu.
— Bem, eu pretendo descobrir agora. Natael, vá dizer a Bael que estarei com ele em…
Na outra ponta da fila, a lateral do carroção de Kadere explodiu, os estilhaços atingindo Aiel e o povo da cidade. Rand soube; não precisou dos calafrios crispando a pele para saber. Saiu correndo em direção ao carroção, atrás de Moiraine e Lan. O tempo pareceu desacelerar, tudo acontecendo ao mesmo tempo, como se o ar fosse uma gelatina agarrando-se a cada momento.
Lanfear saiu para aquele silêncio estupefato — exceto pelos gemidos e gritos dos feridos — com algo flácido, pálido e cheio de listras vermelhas pendendo das mãos, arrastando atrás dela conforme ela descia degraus invisíveis. O rosto da mulher era uma máscara esculpida em gelo.
— Ele me contou, Lews Therin. — Ela quase gritou, arremessando aquela coisa pálida no ar. Algo a apanhou e, inflando-a por um momento, transformou-a em uma estátua sangrenta e transparente de Hadnan Kadere: era a pele dele, removida por inteiro. O vulto ruiu e caiu no chão quando a voz de Lanfear se esganiçou até virar um guincho: — Você deixou outra mulher tocá-lo! De novo!
Os momentos se arrastaram, tudo acontecendo de uma só vez.
Antes que Lanfear alcançasse as pedras do desembarcadouro, Moiraine suspendeu ainda mais as saias e começou a correr em direção a ela. Mesmo a Aes Sedai sendo rápida, Lan era ainda mais, e ele ignorou o berro dela de “Não, Lan!”. Desembainhando a espada, as pernas compridas do Guardião logo a ultrapassaram, o manto furta-cor panejando às costas conforme ele investia. De repente, Lan pareceu dar de cara com uma parede de pedra invisível, quicou para trás e tentou seguir cambaleando outra vez. Um só passo e, como se uma mão gigante lhe tivesse espanado com violência, ele voou dez passadas, atingindo as pedras com força.
Enquanto o Guardião ainda estava no ar, Moiraine avançou, os pés derrapando no calçamento, até ficar cara a cara com Lanfear. Só por um instante. A Abandonada encarou-a como se ponderasse o que era aquilo em seu caminho, e então Moiraine foi arremessada com tanta força para o lado que saiu rolando inúmeras vezes até desaparecer atrás de um dos carroções.
A área do cais era um caos completo. Passados meros instantes desde que o carroção de Kadere explodira, só sendo cego para não saber que a mulher de branco estava manejando o Poder Único. Ao longo das docas, machados se agitavam cortando cordas e soltando as barcaças, enquanto as tripulações, desesperadas, conduziam as embarcações para a água aberta e a fuga. Estivadores de peito nu e gente da cidade com roupas escuras saltavam a bordo. Na outra direção, homens e mulheres gritavam e corriam feito loucos enquanto tentavam atravessar os portões e entrar na cidade. E, entre eles, vultos trajando o cadin’sor velavam o rosto e investiam contra Lanfear com lanças, facas ou mesmo os punhos. Não havia dúvida de que ela era a fonte do ataque, nenhuma dúvida de que lutava com o Poder. Apesar disso, todos corriam para dançar as lanças.
Ondas de fogo investiam contra eles. Flechas incendiárias atravessavam os que se conseguiam se aproximar com as roupas em chamas. Não que Lanfear estivesse lutando com eles, ou que sequer lhes desse muita atenção. Era como se ela estivesse espantando mosquitos ou picadinhas. Os que fugiam eram incendiados tanto quanto os que tentavam lutar. Ela se movia em direção a Rand como se nada mais existisse.
Tudo aconteceu durante algumas batidas de coração.
Ela dera três passos quando Rand agarrou a metade masculina da Fonte Verdadeira, aço derretido e um gelo de estilhaçar, a doçura do mel e o gosto de sambaqui. Nas profundezas do Vazio, a luta pela sobrevivência era distante, a batalha diante dele, só um pouco menos. Enquanto Moiraine desaparecia sob o carroção, ele canalizou, sugando o calor das chamas de Lanfear e afundando-o no rio. Chamas que pouco antes engolfavam formas humanas desapareceram. No mesmo instante, Rand tornou a tecer os fluxos, fazendo surgir um domo cinza enevoado, uma grande forma oval que encapsulava a ele, Lanfear e a maioria dos carroções, uma parede quase transparente que isolava tudo que já não estava dentro dela. Mesmo enquanto amarrava a tessitura, não tinha certeza do que era ou de onde viera — alguma memória de Lews Therin, talvez —, mas as chamas de Lanfear batiam nela e paravam. Rand mal enxergava as pessoas do lado de fora, muitos se debatendo — ele sumira com as chamas, não com as peles queimadas, e aquele fedor ainda pairava no ar —, mas ninguém que já não estivesse em chamas seria incendiado. Também havia corpos dentro da redoma, montículos de tecido chamuscado, alguns agitando-se debilmente e gemendo. Ela não ligou. As chamas que canalizara se esvaneceram, os mosquitos foram espantados. Lanfear sequer olhou para os lados.
Batidas do coração. Fazia frio no Vazio, e, se sentia pena dos mortos, agonizantes e feridos, o sentimento estava tão longínquo que talvez nem existisse. Ele era o próprio frio. A própria vaziez do Vazio. Só a fúria de saidin o preenchia.
Algo se moveu dos dois lados. Aviendha e Egwene, os olhos concentrados em Lanfear. A intenção dele fora isolá-las daquilo. As mulheres provavelmente tinham corrido atrás dele. Mat e Asmodean estavam do lado de fora. A parede não isolara os últimos carroções da fila. Com uma calma gélida, Rand canalizou Ar para capturar Lanfear. Egwene e Aviendha poderiam blindá-la enquanto ele a distraía.
Alguma coisa cortou os fluxos dele. Foram impelidos para trás com tanta força que Rand soltou um grunhido.
— Uma delas? — rosnou Lanfear. — Qual das duas é Aviendha? — A cabeça de Egwene pendeu para trás e ela uivou, os olhos saltando, toda a agonia do mundo lhe saindo pela boca em um grito agudo. — Qual das duas? — Tremendo, Aviendha se ergueu na ponta dos pés, seus uivos seguindo os de Egwene conforme ambas subiam cada vez mais alto.
De repente, o pensamento estava ali, na vacuidade. Espírito tecido com Fogo e Terra. Rand sentiu algo sendo cortado, algo que não enxergava, e Egwene desabou, inerte, enquanto Aviendha se apoiava nas mãos e nos joelhos, cabeça baixa e tremendo.
Lanfear cambaleou, os olhos se alternando entre as mulheres e ele, lagos escuros de fogo negro.
— Você é meu, Lews Therin! Meu!
— Não. — A voz de Rand parecia chegar a seus ouvidos após passar por um túnel de uma milha de extensão. Distraia ela das garotas. Ele continuou se aproximando sem olhar para trás. — Eu nunca fui seu, Mierin. Sempre vou pertencer a Ilyena.