Dor e perda fizeram o Vazio estremecer. E desespero, enquanto ele combatia algo além do fogo de saidin. Por um momento, conseguiu se equilibrar. Eu sou Rand al’Thor. E Ilyena, para todo o sempre, vai ser meu coração. Equilibrado no fio da navalha. Eu sou Rand al’Thor! Outros pensamentos tentaram brotar, uma fonte deles, sobre Ilyena, sobre Mierin, sobre o que ele poderia fazer para derrotá-la. Forçou-se para abafá-los, até o último. Se recobrasse os sentidos do lado errado… Eu sou Rand al’Thor!
— Seu nome é Lanfear, e eu prefiro morrer a amar um dos Abandonados.
Algo cintilou no rosto da mulher, talvez angústia, e então voltou a ser uma máscara de mármore.
— Se você não é meu — disse ela com frieza —, então está morto.
Com o peito em agonia, como se seu coração estivesse prestes a explodir, e a sensação de pregos fumegantes lhe perfurando a cabeça, a dor era tão forte que, dentro do Vazio, ele queria gritar. A morte estava chegando, e ele sabia. Freneticamente — e mesmo no Vazio, frenético, a vacuidade bruxuleava, definhava —, ele teceu Espírito, Fogo e Terra, lançando-os com selvageria. Seu coração não estava mais batendo. Dedos de uma dor sombria destruíam o Vazio. Um véu cinzento lhe caía sobre os olhos. Sentiu sua tessitura rasgar irregularmente a dela. A ardência da respiração em pulmões vazios, o espasmo do coração começando a bombear outra vez. Conseguia enxergar novamente, manchas prateadas e negras flutuando entre ele e uma Lanfear com o rosto pétreo, ainda retomando o equilíbrio após o coice de seus próprios fluxos. A dor estava ali, na cabeça e no peito, como feridas, mas o Vazio se firmou, e a dor corpórea era remota.
E ainda bem que estava distante, pois não tinha tempo para se recuperar. Forçando-se a avançar, Rand golpeou-a com Ar, um porrete para fazê-la cair desacordada. Lanfear cortou a tessitura, e ele golpeou de novo, de novo e de novo, com ela rasgando até última tessitura. Uma chuva furiosa de investidas enquanto ele se aproximava, que a mulher, de alguma forma, enxergava e refutava. Se Rand conseguisse mantê-la ocupada por mais alguns instantes, se uma daquelas clavas invisíveis caísse na cabeça dela, se ele tivesse como se aproximar o suficiente para atacá-la com os punhos… Inconsciente, ela estaria tão indefesa quanto qualquer outra pessoa.
De repente, Lanfear pareceu se dar conta do que ele estava fazendo. Ainda bloqueando os golpes de Rand tão facilmente quanto se estivesse enxergando cada um deles, ela recuou até seus ombros baterem no carroção atrás de si. E então sorriu tal qual o coração do inverno.
— Você vai morrer devagar e, antes de morrer, vai implorar para eu deixar você me amar.
Não foi diretamente Rand que Lanfear atacou desta vez. Foi o elo dele com saidin.
O pânico ressoou pelo Vazio feito um gongo logo no primeiro toque, afiado feito uma lâmina, o Poder esmaecendo à medida que o golpe deslizava cada vez mais fundo entre ele e a Fonte. Com Espírito, Fogo e Terra, Rand cortou a lâmina da faca. Sabia onde encontrá-la, sabia onde estava o elo, sentiu aquela primeira incisão. A blindagem que ela tentara criar sumia, reaparecia, retornava tão rápido quanto ele conseguia cortá-la, mas sempre com um declínio momentâneo de saidin, momentos em que quase falhava, deixando o contra-ataque de Rand mal sendo suficiente para frustrar as investidas de Lanfear. Manejar duas tessituras ao mesmo tempo deveria ser fácil — ele era capaz de manejar dez ou mais —, mas não quando uma delas era uma defesa desesperada contra algo que ele não tinha como saber que estava ali até que já fosse quase tarde demais. Não quando os pensamentos de outro homem continuavam tentando brotar dentro do Vazio, lhe dizendo como derrotá-la. Se desse ouvidos, talvez fosse Lews Therin Telamon a sobreviver à batalha, com Rand al’Thor se tornando apenas uma voz ocasional na mente dele, se tanto.
— Vou fazer estas duas rameiras ficarem assistindo enquanto você implora — acrescentou Lanfear. — Mas é melhor eu fazer as duas verem você morrer ou fazer você ver a morte delas? — Quando ela tinha subido na carroça? Rand precisava vigiá-la, ficar atento a qualquer sinal de que ela estivesse se cansando, perdendo a concentração. Era uma esperança vã. De pé ao lado do retorcido batente de porta ter’angreal, Lanfear baixou o olhar na direção dele, uma rainha prestes a dar sua sentença, mas ainda gastou tempo sorrindo friamente para um bracelete escuro de marfim que virava e revirava entre os dedos. — Qual das duas coisas vai doer mais, Lews Therin? Eu quero que você sofra. Quero que sofra como nenhum homem jamais sofreu!
Quanto mais espesso o fluxo da Fonte, mais difícil seria cortá-lo. Rand enfiou a mão no bolso do casaco, a estátua do homenzinho gordo empunhando a espada pressionada com força contra a garça marcada em sua mão. Ele agarrou saidin o mais fundo que pôde, até que a mácula flutuasse junto com ele na vacuidade, feito chuva orvalhando.
— Dor, Lews Therin.
E houve dor, o mundo engolido em agonia. Não o coração ou a cabeça desta vez, mas o corpo inteiro, cada parte dele, agulhas quentes apunhalando-o dentro do Vazio. Rand pensou ouvir um chiado ardente a cada estocada, a última sempre mais profunda que a anterior. As tentativas de Lanfear de blindá-lo não arrefeceram. Vieram mais rápido, mais fortes. Ele não acreditava que a mulher era tão forte. Agarrando-se ao Vazio, a saidin, causticante e congelante, ele se defendia feito um selvagem. Poderia acabar com aquilo, acabar com ela. Poderia invocar um relâmpago ou envolvê-la no fogo que a própria Lanfear usara para matar.
Imagens passaram depressa em meio à dor. Uma mulher com um vestido escuro de mercadora saltando do cavalo, a espada vermelho-fogo leve em suas mãos. Tinha vindo matá-lo, na companhia de um punhado de outros Amigos das Trevas. Os olhos sombrios de Mat. Eu matei ela. Uma mulher de cabelos dourados jazendo em um corredor em ruínas onde, ao que parecia, as próprias paredes haviam derretido e escorrido. Ilyena, me perdoe! Foi um grito desesperador.
Ele podia acabar com aquilo. Só que não conseguia. Iria morrer, talvez o mundo fosse morrer, mas ele não conseguia se forçar a matar outra mulher. De alguma forma, parecia a maior piada que o mundo já vira.
Limpando o sangue da boca, Moiraine saiu rastejando de trás do carroção e se pôs de pé sem muita firmeza, o som de uma gargalhada masculina ecoando em seus ouvidos. A contragosto, seus olhos dispararam em busca de Lan e o encontraram caído bem perto da enevoada parede cinza da redoma acima de suas cabeças. Ele estremeceu, talvez tentando encontrar forças para se levantar, talvez morrendo. Moiraine se esforçou para tirá-lo do pensamento. Lan salvara sua vida tantas vezes que, por direito, sua vida deveria ser dele, mas há muito que a Aes Sedai tinha feito o que podia para garantir que ele sobrevivesse à sua guerra solitária contra a Sombra. Àquela altura, Lan deveria viver ou morrer sem ela.
A gargalhada era de Rand, de joelhos nas pedras do desembarcadouro. Gargalhando, mas com lágrimas escorrendo por um rosto transtornado, como o de um homem no limite da loucura. Moiraine sentiu um arrepio. Se ele tivesse enlouquecido, ela não poderia fazer nada. Só podia fazer o que podia fazer. O que deveria fazer.
A visão de Lanfear a atingiu feito um choque. Não de surpresa, mas de ver a cena que aparecera com tanta frequência em seus sonhos desde Rhuidean: Lanfear de pé na carroça, cintilando como o sol, envolta em saidar, emoldurada pelo ter’angreal em forma de batente de porta retorcido enquanto sorria impiedosamente com os olhos fixos em Rand. Ela girava um bracelete nas mãos. Um angreal. A menos que Rand tivesse o próprio angreal, ela deveria ser capaz de esmagá-lo. Ou ele tinha um, ou Lanfear estava brincando com ele. Não importava. Moiraine não gostava daquele círculo de marfim entalhado escurecido pelo tempo. À primeira vista, parecia um acrobata se curvando para trás para agarrar os tornozelos. Só olhando mais de perto se notaria que seus pulsos e tornozelos estavam amarrados. Ela não gostava do objeto, mas o trouxera de Rhuidean. Na véspera, tirara o bracelete de uma saca cheia de quinquilharias e o deixara largado ali, aos pés do batente.