Nynaeve entrou em pânico. Percebeu que estava apenas parada lá. Então fugiu na velocidade do pensamento, o Mundo dos Sonhos parecendo se transformar em torno dela.
Nynaeve estava em uma rua empoeirada de um vilarejo com casinhas de madeira, todas de apenas um andar. O Leão Branco de Andor tremulava em um mastro alto, e uma única doca de pedra avançava para um rio largo onde um bando de aves de bico comprido batia asas rumo ao sul, um pouco acima da água. Tudo era vagamente familiar, mas ela precisou de um momento para identificar onde estava: Jurene. Em Cairhien. E aquele rio era o Erinin. Fora ali que ela, Egwene e Elayne entraram a bordo do Flechador, de nome tão mal escolhido quanto o Serpente do Rio, para continuar a jornada até Tear. Aqueles dias pareciam algo lido em um livro muito tempo antes.
Por que tinha ido parar em Jurene? Pergunta simples, respondida assim que ela pensou a respeito: Jurene era o único lugar que conhecia bem o bastante para aparecer, em Tel’aran’rhiod, com a certeza de que Moghedien não estaria. Ficara ali por no máximo uma hora, quando Moghedien ainda nem sabia de sua existência, e Nynaeve estava segura de que nem ela nem Elayne tinham tornado a mencionar o local nem em Tel’aran’rhiod ou acordadas.
Mas aquilo suscitava outra pergunta. A mesma, de certo modo: por que Jurene? Por que não saltar do Sonho e acordar na própria cama? Por pior que fosse, lavar louças e esfregar o chão não a cansavam tanto que deixassem seu sono pesado. Ainda posso ir embora. Moghedien a vira em Salidar, caso tivesse sido Moghedien. Agora Moghedien conhecia Salidar. Posso contar para Sheriam. Como? Admitindo que estava ensinando Siuan? Não fosse com Sheriam e as outras Aes Sedai, ela não deveria pôr as mãos naqueles ter’angreal. Como Siuan os pegava quando bem entendia, Nynaeve não fazia ideia. Não, ela não estava com medo de mais horas com água quente até os cotovelos. Estava com medo de Moghedien. A raiva ardia com força em suas entranhas. Desejava ter um pouco de menta-de-ganso na algibeira de ervas. Estou tão… tão cansada de sentir esse maldito medo.
Havia um banco na frente de uma das casas, com vista para a doca e o rio. Ela se sentou e analisou a situação por todos os ângulos. Era ridícula. A Fonte Verdadeira era uma coisa pálida. Ela canalizou uma chama dançando no ar acima de sua mão. Nynaeve podia até parecer sólida — para si mesma, pelo menos —, mas enxergava o rio através daquela chama fraca. Desfez o fogo, que desapareceu feito névoa assim que a tessitura foi desamarrada. Como poderia enfrentar Moghedien se até mesmo a noviça mais fraca de Salidar conseguiria lhe fazer páreo ou até sobrepujar sua força? Por isso fugira para aquele local, em vez de ir embora de Tel’aran’rhiod. Com medo e com raiva de sentir medo, zangada demais para pensar com clareza, para considerar as próprias fraquezas.
Sairia do Sonho. Independentemente do que Siuan vinha aprontando, estava feito, e a mulher teria de correr o risco junto com ela. O mero pensamento em mais horas esfregando o chão fez sua mão apertar a trança com força. Mais provável que fossem dias, e talvez a vara de Sheriam, ainda por cima. Talvez nunca mais deixassem-na se aproximar de um dos ter’angreal dos sonhos, ou de nenhum ter’angreal. Designariam Faolain para tomar conta dela, em vez de Theodrin. Seria o fim de qualquer estudo sobre Siuan e Leane, e mais ainda de Logain. Talvez o fim de seus estudos sobre a Cura.
Em um rompante de fúria, canalizou outra chama. Se era uma nesga mais forte, ela não conseguia perceber. Não adiantou nada a tentativa de incitar sua raiva na esperança de que fosse ajudar.
— Não há outra opção que não seja contar para elas que eu vi Moghedien — resmungou, puxando a trança com força suficiente para machucar. — Luz, elas vão me entregar para Faolain. Eu quase prefiro morrer!
— Mas você parece gostar de fazer um ou outro servicinho para ela.
Aquela voz debochada fez Nynaeve saltar do banco como se tivesse sido empurrada. Toda de preto, Moghedien estava de pé na rua balançando a cabeça para o que via. Com toda a sua força, Nynaeve urdiu uma proteção de Espírito e arremessou-a entre a outra mulher e saidar. Ou tentou. Foi como cortar uma árvore com uma machadinha de papel. Moghedien até sorriu antes de se dar ao trabalho de cortar a tessitura de Nynaeve, e o fez de forma tão casual quanto se estivesse enxotando um simples picadinha. Nynaeve a encarou, atordoada. Depois de tudo, acabaria assim. O Poder Único, inútil. Toda a raiva que borbulhava dentro dela, inútil. Todos os seus planos, suas esperanças, inúteis. Moghedien nem se preocupou em contra-atacar. Nem se deu ao trabalho de canalizar uma proteção para ela. Tamanho era seu desdém.
— Bem que achei que você tivesse me visto. Fiquei descuidada quando você e Siuan começaram a tentar se matar. E com as mãos. — Moghedien soltou uma gargalhada de menosprezo. Estava urdindo algo, mas de maneira preguiçosa, já que não havia motivo para ter pressa. Nynaeve não sabia o que era, mas mesmo assim queria gritar. Por dentro, a fúria fervia, mas o medo lhe comprometia o bom senso e lhe fincava os pés no chão. — Às vezes, acho que você é ignorante demais até para treinar, você e o antigo Trono de Amyrlin e todo o resto. Mas não posso permitir que você me traia. — A tessitura estava avançando para ela. — Parece que está na hora de finalmente pôr as mãos em você.
— Parada, Moghedien! — gritou Birgitte.
Nynaeve ficou boquiaberta. Era mesmo Birgitte, e com a aparência de sempre, casaco branco curto e calças largas amarelas, a intricada trança dourada jogada por cima do ombro, uma flecha de prata engatada no arco. Era impossível. Birgitte não fazia mais parte de Tel’aran’rhiod, tinha ficado em Salidar para garantir que ninguém descobrisse Nynaeve e Siuan dormindo em pleno sol a pino e começasse a fazer perguntas.
Moghedien ficou tão chocada que os fluxos que tinha urdido desapareceram. O choque, no entanto, durou menos que um instante. A flecha reluzente saiu voando do arco de Birgitte… e evaporou. O arco evaporou. Algo pareceu agarrar a arqueira, movendo seus braços para cima e tirando-a do chão. Quase na mesma hora, ela foi dominada, os pulsos se unindo aos tornozelos a um pé acima do chão.
— Eu devia ter considerado a possibilidade de você aparecer. — Moghedien se virou de costas para Nynaeve para se aproximar de Birgitte. — Está gostando de ser de carne e osso? Sem Gaidal Cain?
Nynaeve pensou em canalizar. Mas o quê? Uma adaga, que talvez nem penetrasse a pele da mulher? Fogo, que nem lhe chamuscaria as saias? Moghedien tanto sabia que ela era inútil que nem olhava para ela. Se Nynaeve interrompesse o fluxo de Espírito para a estatueta de âmbar, acordaria em Salidar e poderia dar um alerta. Seu rosto se retorceu quase às lágrimas quando olhou para Birgitte. A mulher de cabelos dourados estava ali, pendurada, e encarava Moghedien com um ar desafiador. Em contrapartida, a Abandonada a contemplava como um entalhador observaria um pedaço de madeira.
Só tem eu, Nynaeve pensou. Minha canalização não faz a menor diferença. Só tem eu.
Levantar aquele primeiro pé foi como tirá-lo da lama até os joelhos, o segundo passo vacilante nem um pouco mais fácil. Em direção a Moghedien.
— Não me machuque — bradou Nynaeve. — Por favor, não me machuque.
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Birgitte sumira. Uma criança de uns três ou quatro anos com um casaco branco curto e calças largas amarelas estava ali de pé, mexendo com um arco de prata de brinquedo. Jogando a trança dourada para trás, a garotinha mirou o arco em Nynaeve e riu, para em seguida enfiar um dedo na boca como se não tivesse certeza se tinha feito alguma coisa errada. Nynaeve caiu de joelhos. Rastejar de saias era difícil, mas achava que não teria conseguido se manter de pé. De alguma forma, ela conseguiu e, choramingando, esticou a mão em súplica.