E mais um pensamento, feito uma punhalada. Ela jazia em um piso como este, os cabelos dourados esparramados como se estivesse dormindo. Ilyena Cabelos de Sol. Minha Ilyena.
Elaida também estivera presente naquele dia. Ela previu a dor que eu causaria. Sabia da escuridão em mim. De parte dela. O suficiente.
Ilyena, eu não sabia o que estava fazendo. Eu estava louco! Estou louco. Ah, Ilyena!
Elaida sabia — de uma parte —, mas não contou nem essa parte toda. Melhor que tivesse contado.
Ah, Luz, não existe perdão? Fiz o que fiz por loucura. Não existe misericórdia?
Gareth Bryne teria me matado, se soubesse. Morgase teria ordenado a minha morte. Morgase talvez estivesse viva. A mãe de Elayne, viva. Aviendha, viva. Mat. Moiraine. Quantos vivos, se eu tivesse morrido?
Fiz jus à minha tormenta. Mereço a morte final. Ah, Ilyena, eu mereço morrer.
Eu mereço morrer.
Um tropel de botas atrás de Rand. Ele se virou.
Eles vinham de um amplo corredor transversal a menos de vinte passadas de Rand, cerca de vinte homens com armaduras, elmos e os casacos vermelhos com colarinho branco dos Guardas da Rainha. Exceto pelo fato de que Andor àquela altura não tinha uma rainha e de que aqueles homens não tinham servido e ela, quando a rainha estava viva. Um Myrddraal os liderava, o rosto pálido sem olhos feito um verme que vivia debaixo de uma rocha, as placas sobrepostas de armadura negra acentuando a ilusão dos movimentos de serpente, o manto negro pendendo imóvel, não importava como a criatura se movesse. O olhar do Sem-olhos era puro medo, mas medo era algo distante dentro do Vazio. Os homens hesitaram quando o viram, e então o Meio-homem ergueu a espada de lâmina negra. Homens que ainda não haviam sacado as suas puseram as mãos nos punhos das armas.
Rand — ele achava que aquele era seu nome — canalizou de uma forma que não se lembrava de jamais ter feito.
Homens e Myrddraal congelaram onde estavam. Uma geada branca foi se espessando em cada um deles, uma geada que soltava fumaça como as botas de Mat haviam soltado. O braço erguido do Myrddraal se partiu com um estalo alto. Quando se chocaram contra os ladrilhos do piso, braço e espada se espatifaram.
Rand — sim, era esse seu nome: Rand — sentia o frio, o frio feito uma lâmina, ao passar por eles e se virar para a direção de onde tinham vindo. Frio, e ainda assim mais quente que saidin.
Um homem e uma mulher estavam agachados junto da parede, serviçais com fardas vermelhas e brancas, a poucos anos da meia-idade e agarrados um ao outro como que para se proteger. Ao ver Rand — tinha mais um nome, não era só Rand —, o homem começou a se levantar de onde se aninhara para se proteger do grupo liderado pelo Myrddraal, mas a mulher o puxou de volta pela manga.
— Vão em paz — disse Rand, estendendo a mão. Al’Thor. Sim, Rand al’Thor. — Não vou machucar vocês, mas podem se machucar se ficarem aqui.
Os olhos castanhos da mulher se reviraram. Ela teria desmaiado e caído caso o homem não a tivesse apanhado, sua boca fina se mexendo com rapidez, como se ele estivesse rezando, mas sem conseguir pronunciar as palavras.
Rand olhou para onde o homem estava olhando. Sua mão se estendera o suficiente para fora da manga do casaco para desnudar a cabeça do Dragão com crina dourada que era parte de sua pele.
— Não vou machucar vocês — reiterou e partiu, deixando os dois ali mesmo. Ainda tinha Rahvin para encurralar. Rahvin para matar. E depois?
Nenhum som além do estalar de suas botas nos ladrilhos. E, lá no fundo da mente, uma voz tênue com lamentos sobre Ilyena e sobre perdão. Rand se esforçou para sentir Rahvin canalizando, senti-lo preenchido pela Fonte Verdadeira. Nada. Saidin lhe causticava os ossos, congelava a pele, depurava a alma, mas, sem ele, não era fácil ver, a menos que já se estivesse bem perto. Um leão na grama alta, dissera Asmodean certa vez. Um leão enraivecido. Asmodean deveria entrar na conta daqueles que não deviam ter morrido? E Lanfear? Não. Não…
Rand só teve um instante de aviso para se atirar no chão, uma nesga de tempo da espessura de um fio de cabelo antes de sentir os fluxos urdidos de repente e uma barra de luz branca, fogo líquido da grossura de um braço, abrindo uma fenda na parede, rasgando feito uma espada o local onde seu peito estivera. Onde a barra atingiu, nos dois lados do corredor, as paredes e frisos, portas e tapeçarias deixaram de existir. Tapetes destroçados e pedaços de pedra e gesso destruídos choviam em direção ao chão.
E ele pensara que os Abandonados tinham medo de usar fogo devastador! Quem lhe dissera aquilo? Moiraine. Ela com certeza merecera viver.
O fogo devastador brotou das mãos de Rand, um facho branco brilhante zarpando na direção de onde vinha aquela outra barra. A outra barra morreu quando a que Rand canalizava atravessou a parede, deixando uma imagem residual roxa em sua visão. Rand soltou o próprio fluxo. Finalmente conseguira?
Cambaleou para ficar de pé e canalizou Ar, escancarando com tanta força as portas em ruínas que o que sobrara delas foi arrancado das dobradiças. Dentro, o aposento estava vazio. Uma sala de estar, com cadeiras dispostas diante de uma grande lareira de mármore. Seu fogo devastador arrancara um pedaço de um dos arcos que davam para um pequeno pátio com uma fonte, e outro de uma das colunas cilíndricas ao longo do caminho, logo atrás.
Rahvin, porém, não fora por ali e nem morrera naquela explosão de fogo devastador. Restava no ar um resíduo, um tênue vestígio de saidin urdido. Rand o reconheceu. Diferente do portão que abrira para Deslizar até Caemlyn ou do que usara para Viajar — agora já sabia que fora isso que fizera — até o salão do trono. Mas vira um igual àquele em Tear, ele próprio o fizera.
Rand teceu outro. Um portão, uma abertura, ao menos. Um buraco na realidade. Não era escuridão o que havia do outro lado. Na verdade, se ele não soubesse que o caminho estava ali, se não enxergasse a tessitura, talvez não tivesse percebido. Ali, diante dele, estavam os mesmos arcos se abrindo para o mesmo pátio com a fonte, o mesmo caminho colunado. Por um instante, os buracos perfeitamente redondos que seu fogo devastador criara no arco e na coluna falharam, se preencheram, e então voltaram a ser buracos. Para onde quer que o portão levasse, era outro lugar, um reflexo do Palácio Real, assim como fora um dia o reflexo da Pedra de Tear. Rand sentiu um leve arrependimento por não ter falado sobre aquilo com Asmodean quando teve chance, mas nunca conseguira conversar com ninguém sobre aquele dia. Não importava. Naquele dia, ele empunhara Callandor, mas o angreal em seu bolso já se provara suficiente para caçar Rahvin.
Rand atravessou depressa, afrouxou a tessitura e cruzou rápido o pátio, à medida que o portão foi sumindo. Rahvin teria sentido aquele portão, caso tentasse e estivesse perto o bastante. Ter a estátua do homenzinho gordo não significava que ele podia ficar ali esperando para ser atacado.
Nenhum sinal de vida, exceto por ele próprio e uma mosca. Também havia sido assim em Tear. As lamparinas dos corredores permaneciam apagadas com seus pavios brancos que jamais tinham visto uma chama, mas, mesmo no que deveria ser o mais escuro dos salões, havia luz, que parecia vir de todos os lugares e de lugar nenhum. Às vezes, aquelas lamparinas também se moviam, bem como outros objetos. Entre uma olhada e a seguinte, uma lamparina alta podia ter se deslocado um pé, um vaso em um nicho qualquer, uma polegada. Detalhes, como se alguém os tivesse movido enquanto não se estava olhando. Qualquer que fosse aquele lugar, era bem estranho.
Enquanto Rand caminhava ao longo de outra colunata, tentando sentir Rahvin, ocorreu-lhe que não ouvira a voz que chamava por Ilyena desde que canalizara o fogo devastador. Talvez, de alguma forma, tivesse espantado Lews Therin da mente.