As criaturas não conseguiam fazer frente àquilo. Gritos bestiais de fúria se transformaram em uivos de medo, e eles fugiram em todas as direções, exceto na dele. Rand viu um dos Myrddraal tentar impedir as criaturas e ser pisoteado, cavaleiro e montaria, mas os demais esporearam seus animais e fugiram.
Rand os deixou ir. Estava ocupado observando os Aiel de rosto velado irrompendo do cerco das criaturas com suas lanças e facas de lâmina pesada. Era um deles quem estava carregando o estandarte. Aiel não carregavam estandartes, mas aquele, um pedacinho da bandana vermelha aparecendo por baixo da shoufa, carregava. Também havia batalhas em curso em algumas das ruas que saíam da praça, Aiel contra Trollocs, o povo da cidade contra Trollocs, e até homens de armadura com o uniforme da Guarda da Rainha contra Trollocs. Ao que parecia, nem homens dispostos a matar uma rainha eram capazes de aguentar os Trollocs. Rand, porém, mal se dava conta. Estava procurando em meio aos Aiel.
Lá estava. Uma mulher de blusa branca, uma das mãos segurando as saias volumosas enquanto decepava um Trolloc em fuga com uma faca curta. Instantes depois, chamas enveloparam a figura com focinho de urso.
— Aviendha! — Rand não sabia que estava correndo até gritar o nome dela. — Aviendha!
E lá estava Mat, o casaco rasgado e sangue na ponta de lança com lâmina de espada, apoiando-se na haste negra enquanto assistia à fuga dos Trollocs, contente por deixar a briga para outras pessoas, agora que era possível. E Asmodean, segurando uma espada meio sem jeito e tentando vigiar todas as direções ao mesmo tempo, caso algum Trolloc decidisse voltar. Rand sentia saidin nele, ainda que fraco. Achava que, em boa parte da luta, Asmodean não usara aquela lâmina.
Fogo devastador. Fogo devastador, que incendiava e eliminava um fio do Padrão. Quanto mais forte fosse, mais para trás a chama queimava. E o que quer que a pessoa tivesse feito não tinha mais acontecido. Rand não se importava se a explosão que lançara em Rahvin tivesse desembaraçado metade do Padrão. Não se o resultado fosse aquele.
Quando se deu conta das lágrimas que escorriam por seu rosto, largou saidin e o Vazio. Queria sentir aquilo.
— Aviendha! — Rand ergueu-a do chão e a girou, enquanto a mulher o encarava como se ele tivesse enlouquecido. Não queria colocá-la no chão, mas acabou colocando. Assim, podia abraçar Mat. Ou tentar.
Mat o rechaçou.
— Qual é o seu problema? Parece ter achado que nós havíamos morrido. Não que isso não tenha quase acontecido. Ser um general tem que ser mais seguro do que isso!
— Vocês estão vivos — gargalhou Rand. Ele passou a mão pelo cabelo de Aviendha, que perdera o lenço e estava com os fios soltos caindo pelo pescoço. — Estou feliz por vocês estarem vivos. Só isso.
Rand tornou a se voltar para a praça, e sua alegria se esvaiu. Nada poderia extingui-la, mas os corpos que jaziam empilhados onde os Aiel haviam montado guarda diminuíram-na. Muitos deles não eram grandes o bastante para serem de homens. Lá estava Lamelle, o véu rasgado, assim como metade da garganta. Nunca mais lhe prepararia uma sopa. Pevin, as mãos agarradas à haste da lança de um Trolloc, grossa feito um punho, que lhe atravessava o peito, seu rosto com a primeira expressão que Rand via nele. Surpresa. O fogo devastador enganara a morte de seus amigos, mas não a de outros. Gente demais. Donzelas demais.
Contente-se com o que pode ter. Alegre-se com o que você pode salvar e não sinta demais pelas perdas. O pensamento não era dele, mas Rand o assimilou. Parecia uma boa maneira de evitar a loucura antes que a mácula de saidin o conduzisse a ela.
— Para onde você foi? — indagou Aviendha. Não estava zangada. Se tanto, aparentava alívio. — Em um segundo estava lá, no outro, tinha sumido.
— Eu precisava matar Rahvin — explicou ele, calmo. Ela abriu a boca, mas ele a cobriu com os dedos para silenciá-la e em seguida afastou-a com delicadeza. Contente-se com o que pode ter. — Deixe isso para lá. Ele está morto.
Bael surgiu mancando, a cabeça ainda envolvida pela shoufa, mas o véu dependurado na altura do peito. Havia sangue na coxa, e também na ponta da única lança que lhe restava.
— Os Mensageiros da Noite e os Crias da Sombra estão fugindo, Car’a’carn. Alguns dos aguacentos participaram da dança contra eles. Inclusive alguns dos homens com armaduras, embora eles tenham dançado primeiro contra nós. — Sulin estava atrás dele, sem véu, um pavoroso talho vermelho lhe rasgando a bochecha.
— Cacem todos eles pelo tempo que for — ordenou Rand. Ele começou a caminhar, incerto da direção, desde que fosse para longe de Aviendha. — Não quero nenhum deles à solta pelos campos. Fiquem de olho nos Guardas. Depois eu vou descobrir quais eram homens de Rahvin e quais… — Continuou caminhando, falando, e sem olhar para trás. Contente-se com o que pode ter.
56
Brasas incandescentes
A janela alta tinha espaço de sobra para acomodar Rand, erguendo-se bem acima de sua cabeça e distando dois pés de cada lado. Com as mangas enroladas, ele olhava para baixo e observava um dos jardins do Palácio Real. Aviendha passava as mãos pela bacia de pedra-vermelha da fonte, ainda intrigada com tanta água cujo único propósito era ser admirada e manter vivos alguns peixes ornamentais. De início, ficara mais que indignada quando Rand a proibira de sair caçando Trollocs pelas ruas. Na verdade, não sabia se ela teria obedecido, não fosse por uma discreta escolta de Donzelas que Sulin achava que ele não tinha percebido. Rand também não deveria ter ouvido a Donzela de cabelo branco lembrar Aviendha de que ela não era mais Far Dareis Mai e ainda não era uma Sábia. Sem casaco, mas ainda de chapéu para se proteger do sol, Mat estava sentado na borda da fonte e conversava com ela. Sem dúvida investigando o que ela sabia sobre os Aiel estarem impedindo as pessoas de deixar a cidade. Mesmo que Mat tivesse decidido aceitar seu destino, era improvável que algum dia parasse de reclamar. Asmodean estava tocando harpa sentado em um banco à sombra de uma murta vermelha. Rand se perguntou se o homem sabia ou suspeitava do que tinha acontecido. Ele não deveria ter nenhuma lembrança — para ele, aquilo nunca acontecera —, mas quem poderia afirmar o que um dos Abandonados sabia ou seria capaz de concluir?
Uma tosse educada desviou sua atenção do jardim.
A janela de onde Rand olhava os outros ficava a uma braça e meia do chão na parede oeste da sala do trono, o Grande Salão onde Rainhas de Andor haviam recepcionado embaixadores e proferido julgamentos por quase mil anos. Era o único lugar de onde pensara que podia observar Mat e Aviendha sem ser visto ou incomodado. Fileiras de colunas brancas de vinte passadas de altura ladeavam o aposento. A luz das imensas janelas se misturava com a luz colorida das grandes vidraças no teto arqueado, onde o Leão Branco se alternava com retratos de antigas rainhas e com cenas de grandes vitórias andorianas. Enaila e Somara não pareciam impressionadas.
Rand desceu.
— Alguma notícia de Bael?
Enaila deu de ombros.
— A caça aos Trollocs continua. — Pelo tom de voz, a mulher diminuta gostaria de estar participando. A altura de Somara fazia Enaila parecer ainda menor. — Alguns habitantes estão ajudando. A maioria se escondeu em suas casas. Os portões da cidade estão guardados. Nenhuma cria da Sombra vai escapar, eu acho, mas receio que alguns Mensageiros da Noite possam conseguir. — Era difícil matar Myrddraal, e igualmente difícil encurralá-los. Às vezes, era fácil acreditar nas antigas histórias de que eles cavalgavam as sombras e eram capazes de desaparecer ao virar de lado.