Rand rodopiou o cálice e encarou o vinho tinto escuro. Sammael em Illian, e os outros Abandonados só a Luz sabia onde. Seanchan aguardando no outro lado do Oceano de Aryth e, ali, homens prontos para agir em proveito próprio e obter quaisquer ganhos, a despeito de quanto aquilo custasse para o mundo.
— A paz ainda está bem longe — disse ele em um tom brando. — Ainda teremos sangue e morte por um bom tempo.
— É sempre assim — respondeu Bashere, tranquilo, sem que Rand soubesse a que afirmação ele estava se referindo. Talvez às duas.
Enfiando a harpa debaixo do braço, Asmodean se afastou de Mat e Aviendha. Ele gostava de tocar, mas não para uma dupla que não prestava atenção, e que menos ainda apreciava. Não tinha certeza do que acontecera naquela manhã, e não tinha certeza de que queria saber. Muitos Aiel haviam expressado surpresa ao vê-lo, afirmando que tinham-no visto morto. Asmodean não queria detalhes. Um talho extenso descia pela parede logo à sua frente. Sabia o que causara aquele gume afiado, aquela superfície tão escorregadia quanto o gelo, mais lisa do que qualquer mão seria capaz de polir em cem anos.
Distraído — mas sentindo também um calafrio —, ficou se perguntando se ter renascido daquela maneira o tornava um novo homem. Achava que não. A imortalidade não existia mais. Fora um presente do Grande Senhor; era esse nome que usava em sua cabeça, independentemente do que al’Thor exigisse de sua língua. Isso por si só já era prova de que ainda era ele mesmo. Com a imortalidade não mais existindo — ele sabia que devia ser imaginação, mas às vezes pensava sentir o tempo arrastando-o, puxando-o em direção a um túmulo que nunca achara que fosse conhecer —, canalizar o pouco de saidin que conseguia era como beber do esgoto. Não lamentava que Lanfear estivesse morta. O mesmo valia para Rahvin, mas para Lanfear especialmente, pelo que ela lhe havia feito. Daria risada quando cada um dos demais também morresse, principalmente o último. Não tinha renascido como um novo homem, mas iria se segurar o máximo que pudesse naquele tufo de grama à beira do precipício. As raízes acabariam cedendo, e a longa queda viria, mas, até lá, estava vivo.
Abriu uma portinha com a intenção de encontrar um caminho até a despensa. Deveria haver algum vinho decente por lá. Um passo, e ele parou, o sangue sumindo do rosto.
— Você? Não! — As palavras ainda pairavam no ar quando ele morreu.
Morgase secou o suor do rosto e, em seguida, enfiou o lenço de volta pela manga e rearrumou o chapéu de palha um tanto esfarrapado. Pelo menos dera um jeito de conseguir um vestido de cavalgada decente, embora mesmo uma boa lã cinza ainda fosse desconfortável naquele calor. Na realidade, fora Tallanvor quem o conseguira. Deixando o cavalo trotar, ela observou o jovem alto que cavalgava à sua frente por entre as árvores. A corpulência de Basel Gill enfatizava como Tallanvor era alto e esbelto. Ele lhe entregara o vestido dizendo que a peça lhe fazia mais jus do que aquele troço piniquento com que ela fugira do Palácio, e olhando-a de cima, sem nunca pestanejar, nunca dizer qualquer palavra respeitosa. Claro que a própria Morgase decidira que não era seguro que outros soubessem quem ela era, em particular quando descobriu que Gareth Bryne partira de Fontes de Kore. Por que o homem tivera que ir caçar incendiadores de estábulo justo quando ela precisava tanto dele? Não importava, se sairia igualmente bem sem ele. Mas havia algo inquietante nos olhos de Tallanvor quando ele a chamava simplesmente de Morgase.
Com um suspiro, ela deu uma olhada para trás, por cima do ombro. O gigantesco Lamgwin cavalgava vigiando a floresta, Breane a seu lado, observando-o tanto quanto aos arredores. Seu exército não crescera nada desde Caemlyn. Gente demais tinha ouvido falar a respeito de nobres exilados sem motivo e sobre leis injustas na capital para fazer mais que desdenhar até da menção mais casual de mover uma mão em apoio à sua devida governante. Ela duvidava inclusive de que faria alguma diferença se eles soubessem com quem falavam. Então ali estava ela, cavalgando por Altara, mantendo-se o máximo possível na floresta, porque parecia haver grupos de homens armados por toda parte. Cavalgando pela floresta com um valentão de rua com o rosto cheio de cicatrizes, uma nobre cairhiena que virara uma refugiada apaixonada, um estalajadeiro corpulento que mal conseguia evitar cair de joelhos sempre que ela o encarava, e um jovem soldado que por vezes a olhava como se ela estivesse trajando um daqueles vestidos que usara para Gaebril. E Lini, claro. Não havia como se esquecer de Lini.
Como se pensar nela tivesse sido um chamado, a velha babá esporeou seu cavalo e se aproximou.
— Melhor você olhar para a frente — alertou ela com tranquilidade. — “Um leão jovem ataca rápido, e quando você menos espera”.
— Você acha que Tallanvor é perigoso? — questionou Morgase, incisiva, no que Lini, de soslaio, lhe lançou um olhar sugestivo.
— Só da maneira que qualquer homem conseguem ser perigoso. Um homem de bela figura, você não acha? Altura mais do que suficiente, mãos fortes, eu acredito. “Não há por que deixar o mel envelhecer demais antes de prová-lo”.
— Lini — disse Morgase, em tom de advertência.
A idosa vinha insistindo nesse assunto com demasiada frequência nos últimos dias. Tallanvor era um homem bonito, suas mãos de fato pareciam fortes, e ele era dono de panturrilhas bem torneadas, mas era jovem, e Morgase era sua rainha. A última coisa de que ela precisava era começar a olhar para ele como homem, e não como seu súdito e soldado. Estava prestes a dizer isso para Lini, e também que a mulher perdera o juízo se pensasse que ela aceitaria um homem dez anos mais novo, o que com certeza ele era, mas Tallanvor e Gill estavam olhando para trás.
— Controle essa língua, Lini. Se você enfiar ideias tolas na cabeça daquele jovem, vou largá-la em algum lugar por aí.
O riso desdenhoso de Lini teria rendido ao maior nobre de Andor certo tempo de reflexão em uma cela. Se ela ainda estivesse no trono, teria.
— Tem certeza de que quer fazer isso, garota? “Depois que se salta do penhasco, é tarde demais para mudar de ideia”.
— Vou encontrar aliados onde pudermos — respondeu Morgase com dureza.
Tallanvor puxou as rédeas e se sentou bem ereto na sela. O suor lhe escorria pelo rosto, mas ele parecia ignorar o calor. Mestre Gill deu um puxão na gola do gibão coberto de discos, como se desejasse poder tirá-lo.
— Há fazendas logo adiante, após a floresta — informou Tallanvor —, mas é improvável que alguém vá reconhecê-la aqui. — Morgase encarou-o com um olhar neutro. A cada dia ficava mais difícil desviar o olhar quando ele a encarava. — Mais dez milhas e devemos estar em Cormaed. Se aquele sujeito em Sehar não tiver mentido, vai haver uma barca lá, e vamos chegar a Amadícia antes de escurecer. Tem certeza de que quer mesmo fazer isso, Morgase?
O modo como ele pronunciou seu nome… Não. Ela estava deixando as fantasias ridículas de Lini tomarem conta dela. Era culpa do maldito calor.
— Minha decisão já foi tomada, jovem Tallanvor — respondeu ela, com frieza —, e espero não ser questionada depois que tiver resolvido.
Morgase esporeou a montaria com força, fazendo com que o pinote do cavalo quebrasse a troca de olhares e que o animal o ultrapassasse. O jovem conseguiria alcançá-la. Ela encontraria aliados onde pudesse. Recuperaria seu trono, e azar de Gaebril ou de qualquer um que achasse que poderia ocupá-lo em seu lugar.
E a Glória da Luz brilhou sobre ele. E a Paz da Luz lhe rendeu homens. Unindo nações a ele. Tornando muitos um só. Mas os fragmentos de corações machucavam. E o que um dia havia sido se fez novamente — em fogo e em tempestade, dividindo tudo ao meio.
Pois a paz dele… — pois a paz dele… … era a paz…