Leane finalmente terminou de trabalhar em seu vestido e o colocou no corpo, flexionando os braços para trás para dar conta de abotoá-lo. Min não entendia o motivo de tanto trabalho, até porque detestava qualquer ofício que envolvesse agulhas. O decote estava ligeiramente mais cavado, revelando um pouco mais de busto, e o vestido parecia mais justo nos seios e talvez em torno do quadril. Mas tanto trabalho para quê? Naquele celeiro infernal, ninguém a tiraria para dançar.
Revirando os alforjes de Min, Leane desenterrou a caixa de madeira com tintas, pós e outras quinquilharias que Laras a obrigara a levar, antes de partirem. A intenção de Min era jogar tudo fora, mas, por algum motivo, ainda não o fizera. Havia um espelhinho na parte interna da tampa da caixa, e Leane começou a se maquiar usando os pinceizinhos de pele de coelho. Ela nunca tinha demonstrado o menor interesse em qualquer daqueles objetos, mas parecia contrariada por só haver uma escova de madeira e um pequeno pente de marfim para os cabelos. Chegou ao ponto de resmungar por não ter como aquecer o ferro de cachear! Desde que haviam iniciado a busca de Siuan, seu cabelo escuro crescera, mas ainda estava bem acima dos ombros.
Após assistir àquilo por um tempo, Min perguntou:
— O que está aprontando, Le… Amaena? — Ela evitou olhar para Siuan. Min conseguia segurar a língua. Só estava confinada e sendo assada viva, isso sem falar na cereja do bolo: o julgamento. Enforcadas ou amarradas em praça pública. Que escolha! — Decidiu flertar com alguém?
Como Leane era toda trabalho e eficiência, a intenção era fazer uma piada, algo para deixar o clima mais leve, mas a mulher a surpreendeu.
— Isso — respondeu Leane, animada, arregalando os olhos para o espelho enquanto, com cuidado, fazia algo com os cílios. — E se eu flertar com o homem certo, talvez não precisemos nos preocupar com açoitamentos ou coisa do tipo. No mínimo, posso conseguir penas mais brandas para nós.
Com a mão a meio caminho de voltar a enxugar o rosto, Min se espantou — era como uma coruja anunciando sua intenção de virar beija-flor —, mas Siuan simplesmente se sentou para encarar Leane nos olhos.
— De onde saiu essa ideia?
Se Siuan lhe lançasse um olhar daqueles, Min suspeitava que confessaria coisas de que até já se esquecera. Quando Siuan enquadrava alguém daquela maneira, a pessoa se pegava fazendo reverências e correndo para obedecer sem nem se dar conta. Até com Logain, na maioria das vezes, era assim — exceto pela reverência.
Com calma, Leane passou um pincel ao longo das maçãs do rosto e examinou o resultado no espelhinho. Chegou a olhar para Siuan, mas, independentemente do que viu, respondeu no mesmo tom seco com que sempre falava:
— Minha mãe era mercadora, vendia principalmente madeira e peles. Uma vez, eu a vi confundir a cabeça de um lorde de Saldaea até ele consignar toda a sua extração anual de madeira por metade do preço que o homem queria, e duvido que tenha se dado conta do que tinha feito até já estar quase chegando em casa. Se é que se deu conta… Depois, ainda enviou de presente um bracelete de pedra da lua. Nós, domanesas, não merecemos toda a reputação que temos, porque a maior parte foi invenção de gente pedante, teimosa e fofoqueira, mas merecemos parte dela. Claro que minha mãe e minhas tias ensinaram tudo isso para mim e para as minhas irmãs e primas.
Baixando o olhar para si mesma, Leane balançou a cabeça e voltou a dar seu sermão, após um suspiro:
— E, sinto dizer, eu já tinha essa altura toda aos quatorze anos. Era só joelhos e cotovelos, parecia um potro que cresceu rápido demais. Eu mal tinha aprendido a atravessar uma sala sem tropeçar, quando percebi que… — ela respirou fundo — percebi que a vida me levaria a caminhos diferentes dos de uma mercadora. Agora, até isso ficou para trás. Finalmente vou pôr em prática tudo o que aprendi há tantos anos. Dadas as circunstâncias, não consigo pensar em um momento ou local melhor.
Siuan examinou-a atentamente por mais algum tempo.
— O motivo não é esse. Não é só isso. Desembuche.
Arremessando a escovinha para dentro da caixa, Leane se enfureceu.
— Não é só isso? Eu não sei qual é o motivo. Só sei que preciso de algo em minha vida para substituir… o que eu perdi. Você mesma disse que essa é a única chance de sobreviver. Vingança, para mim, não basta. Sei que sua causa é necessária, talvez até correta, mas, que a Luz me salve, também não é suficiente. Não consigo me envolver tanto quanto você. Talvez eu tenha entrado nessa tarde demais. Vou continuar do seu lado, mas isso não me basta.
A raiva foi passando enquanto ela tampava e guardava os potes e frascos, ainda que usasse mais força nos gestos do que seria necessária. A mulher exalava um levíssimo aroma de rosas.
— Sei que flertar não é algo para preencher um vazio, mas é o suficiente para acabar com um momento de tédio. Ser quem eu nasci para ser talvez já baste. Não sei. Essa ideia não é nova. Sempre quis ser como minha mãe e minhas tias. Às vezes, mesmo depois de adulta, eu fantasiava com isso.
A expressão de Leane se tornou pensativa, e os últimos objetos foram para a caixa com mais delicadeza.
— Talvez eu sempre tenha tido a sensação de que estava fingindo ser alguém que não sou, criando uma máscara que acabou adquirindo personalidade própria. Havia trabalho sério a ser feito, mais sério que o de comerciante, e quando eu percebi que poderia ter seguido outro caminho, essa máscara já estava presa demais para ser retirada. Bem, agora isso já passou e a máscara está saindo. Cheguei até a pensar em tentar com Logain, na semana passada, só para praticar. Mas estou destreinada demais, e acho que ele é o tipo de homem que escuta mais promessas do que foi sua intenção fazer, e que depois espera que elas sejam cumpridas. — Um sorrisinho brotou de repente em seus lábios. — Minha mãe sempre dizia que, se isso acontecesse, era um grave erro de cálculo, e que, se não houvesse saída, era preciso ou abandonar a dignidade e fugir, ou pagar o preço e aprender uma lição. — O sorriso ganhou ares de safadeza. — Minha tia Resara dizia que era melhor pagar o preço e aproveitar.
Min apenas balançava a cabeça. Era como se Leane tivesse se tornado outra mulher. Falando daquele jeito sobre…! Mesmo ouvindo, mal podia acreditar. Na verdade, Leane até parecia diferente. Mesmo após tanto trabalho com as escovas, Min não conseguia identificar no rosto dela o menor sinal de tintas ou pós, mas os lábios pareciam mais cheios, as maçãs do rosto, mais altas, e os olhos, maiores. Em qualquer situação, ela era uma mulher mais do que bonita. Naquele momento, no entanto, sua beleza havia quintuplicado.
Siuan, porém, ainda não tinha terminado.
— E se esse lorde do interior for como Logain? — conjecturou delicadamente. — O que você vai fazer?
Ainda ajoelhada, Leane retesou as costas e engoliu em seco antes de responder, a voz perfeitamente equilibrada:
— Dadas as opções, o que você faria?
Ninguém nem piscou, e o silêncio se estendeu.
Antes que Siuan pudesse responder — se é que ela pretendia dar uma resposta; Min teria adorado ouvir —, a corrente e o cadeado rangeram do outro lado da porta.
As outras mulheres se ergueram devagar enquanto pegavam os alforjes e se punham calmamente a postos, mas Min levantou-se de um salto, desejando estar de posse ao menos de uma adaga. Que coisa boba para se desejar, pensou. Só me encrencaria ainda mais. Não sou a maldita heroína de uma história. Mesmo que eu saltasse sobre o guarda…
A porta se abriu, e um homem trajando um justilho de couro por cima da camisa preencheu toda a passagem. Não era um sujeito que pudesse ser atacado por uma jovem, mesmo que armada com uma adaga. Talvez nem com um machado. Largo era a palavra certa para descrevê-lo. E maciço. Os poucos cabelos que ainda lhe restavam eram quase todos brancos, mas sua figura era firme como um toco de carvalho.