Terens começou: — Um homem troncudo… — Mantinha seus braços distantes para ilustrar o que dizia, quando os gritos de “Patrulheiros! Patrulheiros!” começaram a ser ouvidos fora da padaria.
O velho falou roucamente: — Por aqui! Rápido!
Terens se deteve. — Aí?
— Este é uma imitação — disse o velho.
Primeiro Rik, depois Valona e então Terens rastejaram através da porta da fornalha. Ouviu.se um estalo fraco e a parede dos fundos da fornalha moveu-se levemente e oscilou livremente apoiada nas dobradiças superiores. Avançaram e além dela havia uma pequena sala, obscurecida.
Esperaram. A ventilação era ruim, e o cheiro de pão aumentou a fome sem satisfazê-la. Valona continuava sorrindo para Rik, afagando sua mão, mecanicamente, de tempos em tempos. Rik olhava através dela confusamente. De vez em quando levava a mão a seu rosto afogueado.
Valona começou: — Conselheiro…
Ele respondeu bruscamente em um tenso sussurro. — Não agora, Lona. Por favor!
Passou as costas da mão na testa, então olhou fixamente a umidade nos nós de seus dedos.
Ouviu-se um estalo, amplificado pelo abafado confinamento do esconderijo. Terens se enrijeceu. Sem se dar conta inteiramente, levantou os punhos, cerrados.
Era o homem troncudo, passando com dificuldade seus imensos ombros pela abertura.
Olhou para Terens e brincou. — Deixe disso, homem. Não vamos lutar.
Terens olhou para seus punhos, e deixou-os cair.
O homem troncudo estava numa condição marcantemente inferior àquela de quando o haviam visto pela primeira vez. Sua camisa estava totalmente rasgada nas costas e um vergão ainda fresco, que se tornava vermelho e roxo, marcava uma das maças de seu rosto. Seus olhos estavam pequenos e as pálpebras os comprimiam acima e abaixo.
Disse: — Pararam de procurar. Se vocês tiverem fome, a comida aqui não é fantástica, mas é suficiente. O que dizem?
Era noite na Cidade. Havia luzes na Cidade Superior que iluminavam o céu por quilômetros, mas na Cidade Inferior a escuridão era pegajosa. As sombras caíam densamente na frente da padaria escondendo as luzes ilegais, acesas após o toque de recolher, em seu interior.
Rik sentia-se melhor com a comida quente dentro de si. Sua dor de cabeça começou a retroceder. Fixou os olhos nas maças do rosto do homem troncudo.
Timidamente perguntou: — Eles o machucaram?
— Um pouco — disse o homem. — Não importa. Acontece todo dia no meu ramo de negócios. — Riu, mostrando grandes dentes. — Tiveram de admitir que eu não tinha feito coisa alguma mas que estava em seu caminho enquanto caçavam outro cara. A forma mais fácil de pôr um nativo fora do caminho… — Sua mão rosada e desumana, segurando uma arma invisível, imitou um golpe.
Rik esquivou-se e Valona estendeu um braço aflito, protetor.
O homem troncudo inclinou-se para trás, chupando seus dentes à cata de partículas de comida. — Sou Matt Khorov — disse — mas podem me chamar de Padeiro. De onde são vocês?
Terens meneou os ombros. — Bem…
— Entendo sua situação — disse o Padeiro. — O que eu não sei não vai machucar ninguém. Talvez. Talvez. Mesmo assim, no entanto, vocês deveriam confiar em mim. Eu os salvei dos patrulheiros, não salvei?
— Salvou. Obrigado. — Terens não poderia forçar cordialidade em sua voz. Disse: — Como você sabia que estavam atrás de nós? Havia uma porção de gente correndo.
O outro sorriu. — Nenhum deles tinha os rostos como o de vocês três. Eles poderiam ser minerados e usados como giz.
Terens tentou sorrir em resposta. Não conseguiu fazê-lo bem.
— Não estou certo de saber por que você arriscou sua vida. De qualquer modo, obrigado. Não é muita coisa dizer somente obrigado, mas não há nada mais que eu possa fazer direito agora.
— Você não tem de fazer nada. — Os vastos ombros do Padeiro recostaram-se na parede. — Eu faço isto tão freqüentemente quanto possa. Não é nada pessoal. Se os patrulheiros estão atrás de alguém, dou o melhor de mim para esse alguém. Eu odeio os patrulheiros.
Valona falou, com a voz entrecortada: — Você não se mete em encrencas?
— Claro. Olhe isto — Pôs gentilmente um dedo sobre o rosto machucado. — Mas não pense que deva deixar que isto me pare, espero. Por isso construí o forno falso. Assim os patrulheiros não poderiam me agarrar e fazer coisas muito ruins para mim.
Os olhos de Valona estavam arregalados com uma mistura de pavor e fascinação.
— Por que não? — disse o Padeiro. — Você sabe quantos Nobres existem em Florina? Dez mil. Você sabe quantos patrulheiros? Talvez doze mil. E existem quinhentos milhões de nós, nativos. Se todos se aliassem contra eles… — Estalou os dedos.
— Teríamos de lutar contra pistolas de agulha e explosores — disse Terens.
— É. Teríamos de conseguir alguns só para nós — retorquiu o Padeiro. — Vocês, Conselheiros, têm vivido bem próximo dos Nobres. Vocês têm pavor deles.
O mundo de Valona era agora uma grande confusão. Aquele homem lutara com patrulheiros e falava com descuidada autoconfiança com o Conselheiro. Quando Rik puxou sua manga ela desembaraçou os dedos dele gentilmente e disse-lhe para dormir. Ela quase não o olhava. Queria ouvir o que o homem dizia.
O homem troncudo estava dizendo: — Mesmo com pistolas de agulha e explosores, a única maneira dos Nobres manterem Florina é com a ajuda de cem mil Conselheiros.
Terens olhou-o ofendido, mas o Padeiro continuou: — Por exemplo, tome você. Roupas muito bonitas. Limpas. Atraentes. Você conseguiu uma bela choça, eu aposto, com livros-filmes, uma despensa particular e sem toque de recolher. Você pode até mesmo ir à Cidade Superior se quiser. Os Nobres não fariam isso por você para nada.
Terens sentiu-se desanimado para discutir. — Tudo bem — disse. — O que você queria que os Conselheiros fizessem? Guerrilha contra os patrulheiros? Quanto bem isso traria? Eu admito que mantive minha cidade quieta e acima da quota, mas os mantive longe de encrencas. Eu tentei ajudá-los, tanto quanto a lei permitisse. Isso não significa nada? Algum dia…
— Ah, algum dia. Quem pode esperar por algum dia? Quando você e eu estivermos mortos, que diferença fará quem domina Florina? Para nós, eu quero dizer.
— Em primeiro lugar — disse Terens —, eu odeio os Nobres mais que você. Além disso… — Parou, corando.
O Padeiro riu. — Vá em frente. Diga de novo. Eu não vou entregar você por odiar os Nobres, O que fez para ser perseguido por eles?
Terens mantinha.se calado.
O Padeiro não perdeu seu tom de concórdia. — Tudo bem em mantê-los quietos, mas existe algo quanto a ser muito cauteloso. Você vai precisar de ajuda. Eles sabem quem é você.
— Não, não sabem — disse Terens, impetuosamente.
— Devem ter visto seus cartões na Cidade Superior.
— Quem disse que estive na Cidade Superior?
— Um palpite. Aposto que esteve.
— Eles olharam meu cartão, mas não o tempo suficiente para lerem meu nome.
— Mas por tempo bastante para saberem que você é um Conselheiro. Tudo que têm a fazer é encontrar um Conselheiro desaparecido de sua cidade ou um que não possa justificar seus movimentos de hoje. Provavelmente agora os pauzinhos de toda Florina estão sendo mexidos em alta velocidade. Eu acho que você está com problemas.
— Talvez.
— Sabe que não existe talvez. Quer ajuda?
Estavam conversando aos sussurros. Rik havia se encolhido num dos cantos e tentava dormir, Os olhos de Valona moviam-se de interlocutor para interlocutor.
Terens meneou a cabeça. — Não, obrigado. E eu vou sair dessa.