Mais ou menos relutantemente, visto que a autonomia continental não era uma coisa a ser abandonada alegremente, entenderam.
— Então — disse Fife — esperaremos pelo segundo movimento.
Isto ocorrera há um ano. Saíram e o que se seguiu foi o mais estranho e o mais completo fiasco que já desabara sobre a sorte do Nobre de Fife em uma carreira moderadamente longa e mais que moderadamente audaciosa.
Não aconteceu um segundo movimento. Não houve outras cartas para qualquer um deles, O analista espacial permaneceu desaparecido, enquanto Trantor mantinha uma busca incoerente. Não havia qualquer traço dos apocalípticos rumores em Florina, e a colheita e o processamento do kyrt continuava com seu ritmo normal.
O Nobre de Rune costumava chamar Fife a intervalos semanais,
— Fife — dizia. — Alguma novidade? — Sua gordura tremeria de alegria e abundantes risinhos forçavam passagem através de sua garganta.
Fife o atendia fria e impassivelmente. O que poderia fazer? Repetidamente examinara minuciosamente os fatos. Era inútil. Alguma coisa estava faltando. Algum fator vital estava faltando.
E então tudo começou a explodir de uma vez, e ele teve a resposta. Ele sabia que tinha a resposta, mesmo sem nunca ter esperado por ela.
Convocou novamente a reunião, O cronômetro agora dizia que eram duas e vinte e nove.
Estavam começando a surgir agora. Primeiro Bort, lábios comprimidos e um ridículo e rude dedo raspando contra a superfície escanhoada-encanecida de sua bochecha. Então Steen, com seu rosto recém-lavado, limpo de pintura e apresentando uma aparência pálida, doentia.Balle indiferente e cansado, seu rosto encovado, o braço da cadeira bem almofadado, um copo de leite quente a seu lado. Finalmente Rune, dois minutos atrasado, lábios úmidos e mal-humorado, sentado uma vez mais à noite. Desta vez suas luzes estavam obscurecidas a um ponto em que ele era um volume enevoado sentido em um cubo de sombras que as luzes de Fife não poderiam ter iluminado, embora tivessem a potência do Sol de Sark.
Fife começou: — Nobres! Ano passado especulei sobre um perigo distante e complicado. Assim procedendo, caí numa armadilha. O perigo existe, mas não está distante. Está próximo de nós, muito próximo. Um de vocês já sabe o que quero dizer, Os outros descobrirão dentro em breve.
— O que você quer dizer? — perguntou Bort rispidamente.
— Alta traição! — explodiu em resposta Fife.
10. O Fugitivo
Myrlyn Terens não era um homem de ação. Logo, disse a si mesmo, como uma desculpa, ao deixar o espaçoporto, que sua mente estava paralisada.
Tinha de controlar o andar cuidadosamente. Não muito devagar, ou pareceria estar vadiando. Nem muito depressa, ou pareceria estar correndo. Só vivamente, como um patrulheiro caminharia, um patrulheiro que estivesse cuidando de sua vida e pronto a entrar em seu carro diamagnético.
Se pelo menos pudesse entrar em um carro diamagnético! Dirigir um, infelizmente, não se inclui na educação de um floriniano, nem mesmo de um Conselheiro floriniano, então tentou pensar enquanto caminhava e não pôde. Precisava de silêncio e descanso.
E sentia-se meio fraco para caminhar. Poderia não ser um homem de ação, mas tinha agido rapidamente agora por um dia e uma noite e parte de um outro dia. Havia utilizado o estoque de nervos de toda sua vida.
Contudo, não ousava parar.
Se fosse noite poderia ter tido umas poucas horas para pensar. Mas era inicio da tarde.
Se pudesse dirigir um carro diamagnético poderia colocar quilômetros entre si e a cidade. A distância suficiente para pensar um pouco antes de decidir o próximo passo. Mas tinha somente suas pernas.
Se pudesse pensar. Era assim. Se pudesse pensar. Se pudesse suspender toda movimentação, toda ação. Se pudesse apanhar o universo entre instantes, ordenar-lhe-ia que estancasse, enquanto resolvia as coisas. Deveria haver algum jeito.
Mergulhou na bem-vinda sombra da Cidade Inferior. Caminhava rijamente, como vira os patrulheiros caminharem. Oscilava seu cassetete de choque firmemente seguro. As ruas estavam vazias. Os nativos estavam aconchegados em suas barracas. Tanto melhor.
O Conselheiro decidiu escolher uma casa cuidadosamente. Seria melhor escolher uma das melhores, uma decorada com tijolos plásticos coloridos e vidro polarizado nas janelas. A classe inferior estava sombria. Tinha menos a perder. Um “homem superior” recorreria a si mesmo por ajuda.
Caminhou a pequena distância que o separava da casa. Era afastada da rua, outro sinal de influência. Sabia que não teria necessidade de bater à porta ou quebrá-la. Havia um perceptível movimento em uma janela quando ele caminhou pela rampa. (Quantas gerações de necessidade capacitaram um floriniano a farejar a aproximação de um patrulheiro!) A porta se abriria.
Abriu-se.
Uma jovem abriu-a, seus olhos eram círculos de orlas brancas. Estava desajeitada em um vestido de babados que mostrava o esforço determinado da parte de seus pais em sustentar seu status como algo mais que o povo do “lixo floriniano”. Ficou de lado para deixá-lo passar, sua respiração vindo rápida entre lábios separados.
O Conselheiro fez-lhe um gesto para que fechasse a porta. — Seu pai está, menina?
— Pa — gritou, e então disse, ofegante. — Sim, senhor.
— Pa — estava vindo apologeticamente de outro cômodo. Veio devagar. Não era novidade para ele que um patrulheiro estivesse à porta. Era simplesmente mais seguro deixar que uma menina o fizesse entrar. Ela era menos capaz de ser nocauteada que ele mesmo, se acontecesse de o patrulheiro estar irado.
— Seu nome? — perguntou o Conselheiro.
— Jacof, se lhe agradar, senhor.
O uniforme do Conselheiro tinha um caderninho de folhas finas em um de seus bolsos, O Conselheiro o abriu, estudou-o brevemente, fez uma marca de verificação ondulada e disse: — Jacof! Sim! Eu quero ver cada membro da família. Depressa!
Se houvesse encontrado espaço para qualquer emoção que não fosse uma de desesperançada opressão, Terens quase teria apreciado a si mesmo. Não era imune aos sedutores prazeres da autoridade.
Enfileiraram-se. Uma mulher magra, preocupada, uma criança de cerca de dois anos contorcendo-se em seus braços. Então a menina que o fez entrar e um irmão mais jovem.
— Isto é tudo?
— Todo mundo, senhor — disse Jacof humildemente
— Posso cuidar do bebê? — perguntou ansiosamente a mulher. — É hora de sua sesta. Eu o estava colocando na cama. — Estendia a criança como se a visão da jovem inocência pudesse derreter o coração de um patrulheiro.
O Conselheiro não olhou para ela. Um patrulheiro, imaginava, não olharia, e ele era um patrulheiro. — Ponha-a no chão — disse — e dê-lhe uma chupeta açucarada para mantê-la quieta. Agora você, Jacof!
— Sim, senhor.
— Você é um menino responsável, não é? — Um nativo de qualquer idade era, claro, um “menino”,
— Sim, senhor. Os olhos de Jacof brilharam e seus ombros levantaram-se um pouco. — Sou escrevente no centro de processa mento de alimentos. Eu aprendi matemática, divisão explícita. Posso fazer logaritmos.
Sim, o Conselheiro pensou, eles mostraram a você como utilizar uma tábua de logaritmos e ensinaram-lhe como pronunciar a palavra.
Conhecia o tipo. O homem ficaria mais orgulhoso de seus logaritmos que um Nobrezinho de seu iate, O vidro polarizado das janelas era a conseqüência de seus logaritmos e os tijolos decorados anunciavam sua divisão. Seu desacato para com o nativo não-educado seria igual àquele do Nobre médio para com todos os nativos e sua aversão seria mais intensa, já que havia vivido entre eles e fora confundido como um deles por seus chefes.