Podiam somente olhar espantados. Poderiam da mesma forma perguntar se haviam visto um maruim de árvore deslizar pelo caminho.
O Parque estava monótono demais. Sentia o pânico começar a crescer. Avançou por uma escada entre matacões e começou a descer para a área em forma côncava circundada por pequenas cavernas projetadas para abrigar casais apanhados pelo chuvisco noturno. (Eram mais os apanhados que o que poderia ser creditado somente ao azar.)
E então viu o que estava procurando.
Um homem! Mais precisamente um Nobre. Caminhava de um lado para o outro rapidamente. Fumando a ponta de um cigarro com baforadas bruscas, socando-a em um recesso para cinzas, onde ela permaneceu quietamente por um momento, então desapareceu com um rápido clarão. Estava consultando um relógio de corrente.
Não havia ninguém mais na área. Era um lugar feito para a tarde e a noite.
O Nobre estava esperando por alguém. Óbvio demais. Terens olhou em tomo de si. Ninguém o estava seguindo pelas escadas.
Poderia haver outras escadas. Certamente havia. Não importa. Ele não poderia perder esta chance.
Desceu, em direção ao Nobre. O Nobre não o havia visto, claro, até que Terens disse: — Se o senhor me perdoa?
Era bastante respeitoso, mas o Nobre não estava acostumado a ter um patrulheiro tocando seu cotovelo, não importa se mesmo numa maneira respeitosa.
— Que diabo? — disse.
Terens não abandonou nem o respeito nem a urgência no tom de sua voz. (Continue falando. Mantenha seus olhos nos dele só por meio minuto!) — Por aqui, senhor — disse. — Tem relação com a busca em toda a Cidade do nativo assassino.
— Do que você está falando?
— Levarei só um minuto.
Discretamente Terens havia sacado seu chicote neurônico. O Nobre nunca havia visto um. Zuniu um pouco e o Nobre retesou-se e caiu.
O Conselheiro nunca havia levantado a mão contra um Nobre antes. Estava surpreso de quão angustiado e culpado se sentia.
Ainda não havia ninguém à vista. Arrastou o corpo rijo, com seus olhos vidrados e fixos, para a caverna mais próxima. Arrastou-o para a parte mais rasa da caverna.
Despiu o Nobre, puxando as roupas dos braços e pernas enrijecidos com dificuldade. Tirou seu próprio uniforme de patrulheiro, sujo, manchado de suor, e enfiou-o por cima das roupas de baixo do Nobre. Pela primeira vez sentia o tecido de kyrt em alguma parte de si mesmo além de seus dedos.
Então o resto das roupas, e o barrete do Nobre. Este último era necessário. Os barretes não eram inteiramente elegantes para os grupos mais jovens, mas alguns o usavam, e este Nobre felizmente estava entre estes. Para Terens era uma necessidade, pois do contrário seus cabelos claros tomariam o disfarce impossível. Forçou o barrete para baixo firmemente, cobrindo as orelhas.
Então fez o que tinha de ser feito. O assassinato de um patrulheiro não era, deu conta repentinamente, afinal, o pior dos crimes.
Ajustou seu explosor para dispersão máxima e apontou-o para o Nobre inconsciente. Em dez segundos somente uma massa carbonizada havia restado. Isso atrasaria a identificação, confundiria seus perseguidores.
Reduziu o uniforme do patrulheiro a uma cinza branca pulverulenta com o jato e agarrou a pilha de botões e fivelas de prata enegrecida. Isto, também, tomaria a caçada mais difícil. Talvez estivesse conseguindo somente uma hora a mais, mas isto, também, era válido.
E agora teria de ir-se sem demora. Parou por um momento à entrada da gruta para cheirar. O jato trabalhara limpamente. Havia somente o mais leve odor de carne queimada e a leve brisa o limparia em poucos minutos.
Estava descendo os degraus quando uma jovem passou por ele no sentido oposto. Por um momento baixou seus olhos como de hábito. Ela era uma Dama. Levantou-os a tempo de ver que ela era jovem e bem bonita, e estava apressada.
Seu queixo imobilizou-se. Ela não o encontraria, claro. Mas ela estava atrasada, ou ele não estaria olhando tanto para seu relógio. Ela poderia pensar que ele ficara cansado de esperar e fora embora. Ele caminhava um pouco mais rápido. Não a queria retornando, perseguindo-o ofegante, perguntando-lhe se vira um homem jovem.
Deixou o Parque, caminhando sem rumo. Outra meia hora se passou.
Agora o quê? Não mais era um patrulheiro, era um Nobre.
Mas agora o quê?
Parou numa pequena praça em que uma fonte estava ao centro de uma pequena área gramada. À água uma pequena quantidade de detergente fora adicionada, de forma que espumava em vistosa iridescência
Apoiou-se contra a cerca, de costas para o sol do oeste, e, pouco a pouco, jogou a prata enegrecida na fonte.
Pensou na garota que passara por ele na escada quando fizera isso. Ela era muito jovem. Então pensou na Cidade Inferior e o espasmo momentâneo de remorso o deixou.
Os vestígios de prata já se haviam ido e suas mãos estavam vazias. Lentamente começou a revirar os bolsos, fazendo o melhor que podia para que parecesse casual.
O conteúdo de seus bolsos não era particularmente incomum. Um livreto de pequenas anotações, umas poucas moedas, um cartão de identificação. (Santo Sark! Até mesmo os Nobres os carregavam. Contudo, não tinham de exibi-lo para todo patrulheiro que se aproximasse.)
Seu novo nome, aparentemente, era Alstare Deamone. Esperava que nunca tivesse de usá-lo. Existiam somente dez mil homens e crianças na Cidade Superior. A chance de encontrar alguém entre eles que conhecesse Deamone pessoalmente não era muito grande mas tampouco era insignificante.
Tinha vinte e nove anos. Novamente sentiu uma crescente náusea quando pensou no que havia deixado na gruta, e combateu-a. um Nobre era um Nobre. Quantos florinianos de vinte e nove anos foram levados à morte por suas mãos ou por suas ordens? Quantos florinianos de nove anos de idade?
Tinha um endereço, também, mas isto não significava nada para ele. Seu conhecimento da Cidade Superior era rudimentar.
Veja só!
Um retrato colorido de um menininho, talvez três anos, em pseudo-3D. As cores cintilaram quando o retirou de seu estojo, enfraqueceram-se progressivamente quando o colocava de volta. Um filhinho? Um sobrinho? Havia a garota do Parque, portanto não poderia ser um filho, poderia?
Ou ele era casado? Seria o encontro um dos que chamam “clandestino”? Esse encontro aconteceria à luz do dia? Por que não, sob tais circunstâncias?
Terens esperava que sim. Se a garota fosse encontrar um homem casado não relataria rapidamente sua ausência. Ela suporia que ele não havia sido capaz de escapar de sua mulher. Isso lhe daria tempo.
Não, não seria isso. Uma momentânea depressão apoderou-se dele. Crianças brincando de esconde-esconde tropeçariam nos despojos e correriam gritando. Estava fadado a acontecer dentro de vinte e quatro horas.
Voltou ao conteúdo de seus bolsos uma vez mais. Uma licença de bolso de piloto de iate. Não levou em conta. Todos os sarkianos mais abastados tinham iates e os pilotavam. Era a coqueluche deste século. Finalmente, umas poucas tiras de comprovantes de crédito sarkianos. Agora estes poderiam ser temporariamente úteis.
Ocorreu-lhe que não havia comido desde a noite anterior, na casa do Padeiro. Quão rápido alguém podia tomar consciência da fome.
Repentinamente, tornou à licença de iate. Espere, agora, o iate não está em uso agora, não com o proprietário morto. E era seu iate. O número de seu hangar era 26, no Porto 9. Bem…
Onde era o Porto 9? Não tinha a mínima idéia.
Apoiou sua testa contra a frieza da cerca lisa em torno da fonte. E agora? E agora?
Uma voz sobressaltou-o
— Alô — disse. — Está doente?
Terens levantou o olhar. Era um Nobre mais velho. Estava fumando um cigarro longo que continha algumas folhas aromáticas enquanto que uma pedra verde de algum tipo pendia de um punho dourado. Sua expressão era de bondoso interesse, que perturbou Terens a um momento de silêncio, até que se lembrasse. Ele era um do próprio clã agora. Entre si, os Nobres bem poderiam ser seres humanos decentes.