— Receio que sim.
— Por favor, doutor, não faça isso. — Ela apanhou o lenço, onde estavam os cinco créditos de metal cintilante. — Eles podem ser seus, doutor. Eu cuidarei bem dele. Ele não machucará ninguém.
O médico olhou para as peças em sua mão. — Você trabalha numa usina, não?
Ela confirmou, meneando a cabeça.
— Quanto lhe pagam por uma semana?
— Dois vírgula oito créditos.
Ele jogou gentilmente as moedas para o ar, juntou-as na palma fechada de sua mão com um tilintar de metal, então entregou para ela. — Tome, garota. Não há taxa.
Ela as aceitou, indignada. — Não vai contar a ninguém, doutor?
— Receio que tenha de contar. É a lei — disse ele.
Ela se dirigiu às cegas, pesadamente, de voltà à aldeia, segurando desesperadamente Rik contra si.
Na semana seguinte foi divulgada, no noticiário do hipervideo, a morte de um médico em uma giro-colisão durante uma pequena falha em um dos feixes de força de trânsito locais. O nome era familiar e, em seu quarto, naquela noite, ela o comparou com aquele do pedaço de papel. Era o mesmo.
Ela estava triste, porque ele havia sido um bom homem. Tinha recebido seu nome uma vez havia muito tempo de outro trabalhador como o de um Nobre médico que fora bom para com os operários da usina e os amparara em emergências. E quando a emergência viera, ele fora bom para ela também. Mas uma certa alegria afogou sua dor. Ele não tivera tempo de registrar Rik. Ao menos ninguém veio à vila para investigar.
Mais tarde, quando a compreensão de Rik havia progredido, ela lhe contara o que o médico havia dito, de forma que ele permaneceria na vila e estaria seguro.
Rik a estava sacudindo e ela interrompeu seus sonhos.
— Não me ouve? Eu não poderia ser um criminoso se tivesse um trabalho importante.
— Você não poderia ter feito algo errado? — começou ela hesitantemente. — Mesmo que fosse um grande homem, você poderia ter feito. Até mesmo Nobres…
— Estou certo que não. Preciso descobrir tudo para que os outros não tenham dúvidas. Não há outro jeito. Eu tenho que deixar a usina e a vila e descobrir mais sobre mim mesma
Ela sentiu o pânico crescer. — Rik! Seria perigoso. Por que quer fazer isso? Mesmo se você analisava o Nada, por que isto é tão importante para descobrir mais?
— Por causa de outra coisa que eu lembrei.
— Que outra coisa?
Ele murmurou: — Não quero contar-lhe.
— Você deve contar a alguém. Poderia esquecer de novo.
Ele agarrou seu braço. — Está bem. Você não contará a mais ninguém, certo, Lona? Você só será minha memória sobressalente para o caso de eu esquecer.
— Certo, Rik.
Rik olhou á sua volta. O mundo era lindo demais. Valona uma vez lhe contara que havia um enorme letreiro luminoso na Cidade Superior, mais precisamente quilômetros acima dela, que dizia: “De todos os Planetas da Galáxia, Florina é o mais lindo”,
E quando olhava em torno de si, podia acreditar nisso.
Disse: — É algo terrível de lembrar, mas lembro-me agora com clareza. Veio esta tarde.
— Sim?
Ele a estava encarando com horror. — Todos vão morrer. Todos em Florina.
2. O Conselheiro
Myrlyn Terens estava removendo um livrofilme da prateleira quando a campainha da porta soou. As linhas de seu rosto rechonchudo, que até então evidenciavam reflexão, agora desapareceram e mudaram para a expressão mais usual de delicada cautela. Passou a mão pelos cabelos finos, avermelhados, e gritou: — Um minuto!
Recolocou o filme e pressionou o contato que permitia que a tampa retomasse à posição original, tornando-se indistinguível do resto da parede. Para os simples operários e colonos com quem lidava, era uma questão de vago orgulho que um dos seus, por nascimento ou menos, possuísse filmes. Iluminava, através de tênue reflexão, a densa escuridão de suas próprias mentes. E contudo não poderia expor os filmes abertamente.
A visão deles estragaria certas coisas. Teria congelado suas nada articuladas línguas. Poderiam gabar-se dos livros de seu Conselheiro, mas a presença real deles ante seus olhos teria feito Terens parecer demais um Nobre.
Havia, claro, os Nobres também. Era improvável ao extremo que quer um deles o visitasse socialmente em sua casa, mas se um deles tivesse de entrar, uma fileira de filmes à vista seria injuriosa. Ele era um Conselheiro e por isso tinha certos privilégios, mas nunca deveria ostentá-los.
Gritou novamente: — Estou indo!
Desta vez caminhou para a porta, fechando a parte superior de sua túnica enquanto andava. Mesmo sua vestimenta era um pouco como as dos Nobres. Algumas vezes quase se esquecia de que havia nascido em Florina.
Valona March estava no degrau da porta. Dobrou seus joelhos e abaixou a cabeça em um cumprimento respeitoso.
Terens abriu mais a porta. — Entre, Valona. Sente-se. Certamente passa da hora de recolher. Espero que os patrulheiros não a tenham visto.
— Eu acho que não, Conselheiro.
— Bem, esperemos que não. Você tem um registro ruim, você sabe.
— Sei, Conselheiro. Sou muito grata pelo que o senhor fez por mim no passado.
— Ora, esqueça. Venha, sente-se. Gostaria de algo para beber ou para comer?
Ela sentou-se, com as costas eretas, na beira de uma cadeira e meneou a cabeça. — Não, obrigada, Conselheiro. Já comi.
Era de bom tom entre os habitantes da vila oferecer um lanche. Não o era aceitar. Terens sabia disso. Não insistiu.
— Qual é o problema agora, Valona? Rik novamente? — disse. Valona confirmou com a cabeça, mas parecia estar confusa para outras explicações.
— Ele está com problemas na usina? — perguntou Terens.
— Não, Conselheiro.
— As dores de cabeça outra vez?
— Não, Conselheiro.
Terens esperava, seus olhos brilhantes contraíam-se e tornavam-se penetrantes. — Bem, Valona, você não espera que eu adivinhe seu problema, não? Vamos, fale ou não poderei ajudá-la. Você quer ajuda, suponho.
Ela disse: — Quero,Conselheiro — e então explodiu: — Como vou contar-lhe, Conselheiro? Parece loucura.
Terens teve um impulso de afagar seu ombro, mas sabia que ela se esquivaria ao toque. Estava sentada, como sempre, com suas grandes mãos enterradas, tanto quanto possível, no vestido. Notou que seus dedos grossos, fortes, estavam entrelaçados e torcendo-se lentamente.
— Ouvirei, o que quer que seja — disse ele.
— O senhor se lembra, Conselheiro, quando vim aqui contar-lhe sobre o médico da Cidade e o que ele havia dito?
— Lembro-me, Valona. E me lembro de ter-lhe dito que você nunca deveria fazer nada daquilo novamente sem me consultar. Está lembrada?
Ela abriu completamente os olhos. Não precisava de estímulo para recobrar sua irritação. — Eu nunca iria fazer uma coisa daquelas novamente,Conselheiro. Eu só quero lembrá-lo de que o senhor disse que faria tudo para me ajudar a ficar com Rik.
— E farei. Bem, então, os patrulheiros têm perguntado por ele?
— Não. Ah, Conselheiro, o senhor acha que eles poderiam perguntar?
— Estou certo de que não perguntarão. — Estava perdendo a paciência. — Agora, vamos, Valona, diga-me qual é o problema.
Seus olhos se entristeceram. — Conselheiro, ele diz que vai me deixar. Eu quero que o senhor o impeça.
— Por que ele quer deixá-la?
— Ele diz que está relembrando coisas.
O interesse surgiu na face de Terens. Inclinou-se para a frente e quase agarrou a mão de Valona. — Relembrando coisas? Que coisas?
Terens lembrou-se do dia em que Rik fora encontrado. Vira os garotos agrupados próximo a uma das valas de irrigação nos limites da Cidade. Haviam elevado suas vozes estridentes para chamar sua atenção.