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José Saramago

As intermitências

da morte

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Companhia das letras

Copyright © 2005 by José Saramago

Por desejo do autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal

os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo

da ficção; não se referem a pessoas natos concretos, e sobre eles não

emitem opinião

ISNB: 85-359-0725-4

2005

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A Pilar, minha casa

saberemos cada vez menos o que é um ser humano.

Livro das Previsões

Pensa por ex. mais na morte, - & seria estranho em verdade

que não tivesse de conhecer por esse facto novas

representações, novos âmbitos da linguagem.

Wittgenstem

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No dia seguinte ninguém morreu. o facto, por absolutamente

contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação

enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos

lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história

universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez

ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas

as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e

nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um

falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom

fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles

acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a

alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente

nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em

primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o

habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da

dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia.

sangue, porém, houve-o, e não pouco.

Desvairados, confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os

bombeiros extraíam da amálgama dos destroços míseros corpos

humanos que, de acordo com a lógica matemática das colisões,

deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos

ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim

eram transportados aos hospitais, ao som das dilacerantes sereias das

ambulâncias. Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas

iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos, Esse pobre

diabo não tem remédio possível, nem valia a pena perder tempo a

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operá-lo, dizia o cirurgião à enfermeira enquanto esta lhe ajustava a

máscara à cara.

Realmente, talvez não houvesse salvação para o coitado no dia

anterior, mas o que estava claro é que a vítima se recusava a morrer

neste. E o que acontecia aqui, acontecia em todo o país. Até à meia-noite

em ponto do último dia do ano ainda houve gente que aceitou morrer

no mais fiel acatamento às regras, quer as que se reportavam ao fundo

da questão, isto é, acabar-se a vida, quer as que atinham às múltiplas

modalidades de que ele, o referido fundo da questão, com maior ou

menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento

fatal. um caso sobre todos interessante, obviamente por se tratar de

quem se tratava, foi o da idosíssima e veneranda rainha-mãe. As vinte e

três horas e cinquenta e nove minutos daquele dia trinta e um de

dezembro ninguém seria tão ingénuo que apostasse um pau de fósforo

queimado pela vida da real senhora. Perdida qualquer esperança,

rendidos os médicos à implacável evidência, a família real,

hierarquicamente disposta ao redor do leito, esperava com resignação o

derradeiro suspiro da matriarca, talvez umas palavrinhas, uma última

sentença edificante com vista à formação moral dos amados príncipes

seus netos, talvez uma bela e arredondada frase dirigida à sempre

ingrata retentiva dos súbditos vindouros. E depois, como se o tempo

tivesse parado, não aconteceu nada. A rainha-mãe nem melhorou nem

piorou, ficou ali como suspensa, baloiçando o frágil corpo à borda da

vida, ameaçando a cada instante cair para o outro lado, mas atada a este

por um ténue fio que a morte, só podia ser ela, não se sabe por que

estranho capricho, continuava a segurar. Já tínhamos passado ao dia

seguinte, e nele, como se informou logo no princípio deste relato,

ninguém iria morrer.

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A tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor de

que, desde a entrada do novo ano, mais precisamente desde as zero

horas deste dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de

se ter dado em todo o país um só falecimento que fosse. Poderia pensar-

se, por exemplo, que o boato tivesse tido origem na surpreendente

resistência da rainha-mãe a desistir da pouca vida que ainda lhe

restava, mas a verdade é que a habitual parte médica distribuída pelo

gabinete de imprensa do palácio aos meios de comunicação social não

só assegurava que o estado geral da real enferma havia experimentado

visíveis melhoras durante a noite, como até sugeria, como até dava a

entender, escolhendo cuidadosamente as palavras, a possibilidade de

um completo restabelecimento da importantíssima saúde. Na sua

primeira manifestação o rumor também poderia ter saído com toda a

naturalidade de uma agência de enterros e trasladações, Pelos vistos

ninguém parece estar disposto a morrer no primeiro dia do ano, ou de

um hospital, Aquele tipo da cama vinte e sete não ata nem desata, ou do

porta-voz da polícia de trânsito, É um autêntico mistério que, tendo

havido tantos acidentes na estrada, não haja ao menos um morto para

exemplo. o boato, cuja fonte primigénia nunca foi descoberta, sem que,

por outro lado, à luz do que viria a suceder depois, isso importasse

muito, não tardou a chegar aos jornais, à rádio e à televisão, e fez

espevitar imediatamente as orelhas a directores, adjuntos e chefes de

redacção, pessoas não só preparadas para farejar à distância os grandes

acontecimentos da história do mundo como treinadas no sentido de os

tornar ainda maiores sempre que tal convenha. Em poucos minutos já

estavam na rua dezenas de repórteres de investigação fazendo

perguntas a todo o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente, ao

mesmo tempo que nas fervilhantes redacções as baterias de telefones se

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agitavam e vibravam em idênticos frenesis indagadores. Fizeram-se

chamadas para os hospitais, para a cruz vermelha, para a morgue, para

as agências funerárias, para as polícias, para todas elas, com

compreensível exclusão da secreta, mas as respostas iam dar às mesmas

lacónicas palavras, Não há mortos. Mais sorte teria aquela jovem

repórter de televisão a quem um transeunte, olhando alternadamente

para ela e para a câmara, contou um caso vivido em pessoa e que era a

exacta cópia do já citado episódio da rainha-mãe, Estava justamente a

dar a meia-noite, disse ele, quando o meu avô, que parecia mesmo a

ponto de finar-se, abriu de repente os olhos antes que soasse a última

badalada no relógio da torre, como se se tivesse arrependido do passo

que ia dar, e não morreu. A repórter ficou a tal ponto excitada com o