visível. Como iremos saber que chegamos, perguntou a mulher, o pai o
saberá. Ela compreendeu e não fez mais perguntas. Continuaram a
andar, ainda cem metros, ainda dez passos, e de súbito o homem disse,
Chegamos, Acabou, sim. Atrás deles uma voz repetiu, Acabou. A mãe
do menino amparava pela última vez o filho morto no regaço do seu
braço esquerdo, a mão direita segurava ao ombro a pá e a enxada de
que os outros se tinham esquecido. Andemos um pouco mais, até
àquele freixo, disse o cunhado. Ao longe, numa encosta, distinguiam-se
as luzes de uma povoação. Pelo pisar da mula percebia-se que a terra se
tornara macia, deveria ser fácil de cavar. Este sítio parece-me bom, disse
por fim o homem, a árvore servir-nos-á de sinal para quando viermos
36
trazer-lhes umas flores. A mãe do menino deixou cair a enxada e a pá e,
suavemente, deitou o filho no chão. Depois, as duas irmãs, com mil
cautelas para que não resvalasse, receberam o corpo do pai e, sem
esperarem a ajuda do homem que já descia da mula, foram colocá-lo ao
lado do neto. A mãe do menino soluçava, repetia monotonamente, Meu
filho, meu pai, e a irmã veio e abraçou-se a ela, chorando também e
dizendo, Foi melhor assim, foi melhor assim, a vida destes infelizes já
não era vida. Ajoelharam-se ambas no chão a prantear os mortos que
tinham vindo a enganar a morte. o homem já manejava a enxada,
cavava, retirava com a pá a terra solta, e logo voltava a cavar. Para
baixo a terra era mais dura, mais compacta, algo pedregosa, só ao cabo
de meia hora de trabalho contínuo a cova ganhou profundidade
suficiente. Não havia caixão nem mortalha, os corpos descansariam
sobre a terra estreme, somente com as roupas que traziam postas.
unindo as forças, o homem e as duas mulheres, ele dentro da cova, elas
fora, uma de cada lado, fizeram descer devagar o corpo do velho, elas
sustentando-o pelos braços abertos em cruz, ele amparando-o até que
tocou o fundo. As mulheres não paravam de chorar, o homem tinha os
olhos secos, mas todo ele tremia, como se estivesse atacado de sezões.
Ainda faltava o pior. Entre lágrimas e gemidos, o menino foi descido,
arrumado ao lado do avô, mas ali não estava bem, um vultozinho
pequeno, insignificante, uma vida sem importância, deixado à parte
como se não pertencesse à família. Então o homem curvou-se, tomou a
criança do chão, deitou-a de bruços sobre o peito do avô, depois os
braços deste foram cruzados sobre o corpinho minúsculo, agora sim, já
estão acomodados, prepa-rados para o seu descanso, podemos começar
a lançar-lhes a terra para cima, com jeito, pouco a pouco, para que ainda
possam olhar-nos por algum tempo mais, para que possam despedir-se
37
de nós, ouçamos o que estão dizendo, adeus minhas filhas, adeus meu
genro, adeus meus tios, adeus minha mãe. Quando a cova ficou cheia, o
homem calcou e alisou a terra para que não se percebesse, se alguém
passasse por ali, que havia gente enterrada. Colocou uma pedra à
cabeceira e outra mais pequena aos pés, a seguir espalhou sobre a cova
as ervas que havia cortado antes com a enxada, outras plantas, vivas,
em poucos dias virão tomar o lugar destas que, murchas, mortas,
ressequidas, entrarão no ciclo alimentar da mesma terra de que haviam
brotado. o homem mediu a passos largos a distância entre a árvore e a
cova, doze foram, depois pôs ao ombro a pá e a enxada, Vamos, disse. A
lua desaparecera, o céu estava outra vez coberto. Começou a chover
quando acabavam de atrelar a mula à carroça.
Os actores do dramático lance que acaba de ser descrito com
desusada minúcia num relato que até agora havia preferido oferecer ao
leitor curioso, por assim dizer, uma visão panorâmica dos factos, foram,
quando da sua inopinada entrada em cena, socialmente classificados
como camponeses pobres. o erro, resultante de uma impressão precipi-
tada do narrador, de um exame que não passou de superficial, deverá,
por respeito à verdade, ser imediatamente rectificado. uma família
camponesa pobre, das realmente pobres, nunca chegaria a ser
proprietária de uma carroça nem teria posses para sustentar um animal
de tanto alimento como é a mula. Tratava-se, sim, de uma família de
pequenos agricultores, gente remediada na modéstia do meio em que
viviam, pessoas com educação e instrução escolar suficiente para
poderem manter entre si diálogos não só gramaticalmente correctos,
mas também com aquilo a que, à falta de melhor, alguns costumam
chamar conteúdo, outros substância, outros, mais terra-a-terra, miolo.
38
Se assim não fosse, nunca jamais a tia solteira teria sido capaz de pôr de
pé aquela tão formosa frase antes comentada. Que dirá a vizinhança
quando der por que já não estão aqui aqueles que, sem morrer, à morte
estavam. Corrigido a tempo o lapso, posta a verdade no seu lugar,
vejamos então o que disse a vizinhança. Apesar das precauções
tomadas, alguém vira a carroça e estranhara a saída daqueles três a tais
horas. Precisamente foi essa a pergunta que o vizinho vigilante fizera
mentalmente, Aonde irão aqueles três a esta hora da noite, repetida na
manhã seguinte, com uma pequena mudança, ao genro do velho
agricultor, Aonde iam vocês àquela hora da noite. o interpelado
respondeu que tinham ido tratar de um assunto, mas o vizinho não se
deu por satisfeito, um assunto à meia-noite, de carroça, com a tua
mulher e a tua cunhada, caso raro, disse ele, será raro, mas foi assim
mesmo, E donde vinham vocês quando o céu já começava a clarear,
Não é da tua conta, Tens razão, desculpa, realmente não é da minha
conta, mas em todo o caso suponho que te posso perguntar como se
encontra o teu sogro, Na mesma, E o teu sobrinho pequeno, Também,
Ah, estimo as melhoras de ambos, obrigado, Até logo, Até logo. o
vizinho deu uns passos, parou, voltou atrás, Pareceu-me ver que
levavam algo na carroça, pareceu-me ver que a tua irmã tinha uma
criança ao colo, e, se assim era, então o mais provável é que o vulto
deitado que me pareceu ver, coberto com uma manta, fosse o teu sogro,
tanto mais, Tanto mais, quê, Tanto mais que no regresso a carroça vinha
vazia e a tua irmã não trazia nenhuma criança ao colo, Pelos vistos, não
dormes de noite, Tenho o sono leve, acordo com facilidade, Acordaste
quando nos fomos, acordaste quando voltámos, a isso se chama
coincidência, Assim é, E queres que te diga o que se passou, se essa for a
tua vontade, Vem comigo. Entraram em casa, o vizinho cumprimentou
39
as três mulheres, Não quero incomodar, disse contrafeito, e esperou.
serás a primeira pessoa a saber, disse o genro, e não terás de guardar
segredo porque não to vamos pedir, Não digas senão o que realmente
queiras dizer, o meu sogro e o meu sobrinho morreram esta noite,
levámo-los ao outro lado da fronteira, lá onde a morte continua em
actividade, Mataram-nos, exclamou o vizinho, De certa maneira, sim,
uma vez que eles não poderiam ter ido por seu pé, de certa maneira,
não, porque o fizemos por ordem do meu sogro, quanto ao menino,