pobrezinho, esse não tinha querer nem vida para viver, ficaram
enterrados ao pé de um freixo, podia dizer-se que abraçados um ao
outro. o vizinho levou as mãos à cabeça, E agora, Agora tu vais contá-lo
a toda a aldeia, seremos presos e levados à polícia, provavelmente
julgados e condenados pelo que não fizemos, Fizeram, sim, um metro
antes da fronteira ainda estavam vivos, um metro depois já estavam
mortos, diz-me tu quando foi que os matámos, e como, se não os
tivessem levado, sim, estariam aqui, esperando a morte que não vinha.
Caladas, serenas, as três mulheres olhavam o vizinho. Vou-me embora,
disse ele, realmente desconfiava de que algo tinha acontecido, mas
nunca pensei que fosse isto, Tenho um pedido a fazer-te, disse o genro,
Qual, Que me acompanhes à polícia, assim não terás tu que ir de porta
em porta, por aí, a contar às pessoas os horríveis crimes que cometemos,
imagine-se, parricídio, infanticídio, santo deus, que monstros vivem
nesta casa, Não o contaria dessa maneira, Bem sei, acompanhas-me,
Quando, Agora mesmo, o ferro deve bater-se enquanto está quente,
Vamos.
Não foram nem condenados nem julgados. Como um rastilho, a
notícia correu veloz por todo o país, os meios de comunicação
vituperaram os infames, as irmãs assassinas, o genro instrumento do
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crime, choraram-se lágrimas sobre o ancião e o inocentinho como se eles
fossem o avô e o neto que toda a gente desejaria ter tido, pela milésima
vez jornais bem pensantes que actuavam como barómetros da
moralidade pública apontaram o dedo à imparável degradação dos
valores tradicionais da família, fonte, causa e origem de todos os males
em sua opinião, e eis senão quando quarenta e oito horas depois
começaram a chegar informações sobre práticas idênticas que estavam a
ocorrer em todas as regiões fronteiriças. outras carroças e outras mulas
levaram outros corpos inermes, falsas ambulâncias deram voltas e
voltas por azinhagas abandonadas para chegarem ao lugar onde
deviam descarregá-los, atados no trajecto, em geral, pelos cintos de
segurança ou, em algum censurável caso, escondidos nos porta-
bagagens e tapados com uma manta, carros de todas as marcas,
modelos e preços transportaram a essa nova guilhotina cujo fio, com
perdão da comparação libérrima, era a finíssima linha da fronteira,
invisível a olho nu, aqueles infelizes a quem a morte, no lado de cá,
havia mantido em situação de pena suspensa. Nem todas as famílias
que assim procederam poderiam alegar em sua defesa os motivos de
algum modo respeitáveis, ainda que obviamente discutíveis,
apresentados pelos nossos conhecidos e angustiados agricultores que,
muito longe de imaginarem as consequências, haviam dado início ao
tráfico. Algumas não quiseram ver no expediente de ir despejar o pai ou
o avô em território estrangeiro senão uma maneira limpa e eficaz,
radical seria um termo mais exacto, de se verem livres dos autênticos
pesos mortos que os seus moribundos eram lá em casa. os meios de
comunicação que antes tinham vituperado energicamente as filhas e o
genro do velho enterrado com o neto, incluindo depois nessa
reprovação a tia solteira, acusada de cumplicidade e conivência,
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estigmatizavam agora a crueldade e a falta de patriotismo de pessoas
aparentemente decentes que nesta circunstância de gravíssima crise
nacional tinham deixado cair a máscara hipócrita por trás da qual
escondiam o seu verdadeiro carácter. Apertado pelos governos dos três
países limítrofes e pela oposição política interna, o chefe do governo
condenou a desumana acção, apelou ao respeito pela vida e anunciou
que as forças armadas tomariam imediatamente posições ao longo da
fronteira para impedir a passagem de qualquer cidadão em estado de
diminuição física terminal, quer fosse o intento de sua própria
iniciativa, quer determinado por arbitrária decisão de parentes. No
fundo, no fundo, mas disto, claro está, não ousou falar o primeiro-
ministro, o governo não via com tão maus olhos um êxodo que, em
última análise, serviria o interesse do país na medida em que ajudaria a
baixar uma pressão demográfica em aumento contínuo desde há três
meses, embora ainda longe de atingir níveis realmente inquietantes.
Também não disse o chefe do governo que nesse mesmo dia se havia
reunido discretamente com o ministro do interior a fim de planear a
colocação de vigilantes, ou espias, em todas as localidades do país,
cidades, vilas e aldeias, com a missão de comunicarem às autoridades
qualquer movimento suspeito de pessoas afins a padecentes em
situação de morte suspensa. A decisão de intervir ou não intervir seria
ponderada caso por caso, uma vez que não era objectivo do governo
travar totalmente este surto migratório de novo tipo, mas sim dar uma
satisfação parcial às preocupações dos governos dos países com
fronteiras comuns, o suficiente para calarem por um tempo as
reclamações. Não estamos aqui para fazer o que eles querem, disse com
autoridade o primeiro-ministro, Ainda vão ficar fora do plano os
pequenos casarios, as herdades, as casas isoladas, notou o ministro do
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interior, A esses vamos deixá-los à vontade, que façam o que
entenderem, bem sabe, meu caro ministro, por experiência, que é
impossível colocar um polícia ao pé de cada pessoa.
Durante duas semanas o plano funcionou mais ou menos na
perfeição, mas, a partir daí, uns quantos vigilantes começaram a
queixar-se de que estavam a receber ameaças pelo telefone, cominando-
os, se queriam viver uma vida tranquila, a fazerem vista grossa ao
tráfico clandestino de padecentes terminais, e mesmo a fechar os olhos
por completo se não queriam aumentar com o seu próprio corpo a
quantidade das pessoas de cuja observação haviam sido encarregados.
Não eram palavras vãs, como logo se viu quando as famílias de quatro
vigilantes foram avisadas por telefonemas anónimos de que deveriam ir
recolhê-los em sítios determinados. Tal como se encontravam, isto é,
não mortos, mas também não vivos. Perante a gravidade da situação, o
ministro do interior decidiu mostrar o seu poder ao desconhecido
inimigo, ordenando, por um lado, que os espias intensificassem a acção
investigadora, e, por outro lado, cancelando o sistema de conta-gotas,
este sim, este não, que vinha sendo aplicado de acordo com a táctica do
primeiro-ministro. A resposta foi imediata, outros quatro vigilantes
sofreram a triste sorte dos anteriores, mas, neste caso, não houve mais
que uma chamada telefónica, dirigida ao próprio ministério do interior,
o que poderia ser interpretado como uma provocação, mas igualmente
como uma acção determinada pela pura lógica, como quem diz Nós
existimos. A mensagem, porém, não ficou por aqui, trazia anexa uma
proposta construtiva, Estabeleçamos um acordo de cavalheiros, disse a
voz do outro lado, o ministério manda retirar os vigilantes e nós