Convencendo as famílias, em nome dos mais sagrados princípios de
humanidade, de amor ao próximo e de solidariedade, a ficar com os
seus enfermos terminais em casa, E como crê que poderá produzir esse
milagre, Estou a pensar numa grande campanha de publicidade em
todos os meios de difusão, imprensa, televisão e rádio, incluindo
desfiles de rua, sessões de esclarecimento, distribuição de panfletos e
autocolantes, teatro de rua e de sala, cinema, sobretudo dramas
sentimentais e desenhos animados, uma campanha capaz de emocionar
até às lágrimas, uma campanha que leve ao arrependimento os parentes
desencaminhados dos seus deveres e obrigações, que torne as pessoas
solidárias, abne-gadas, compassivas, estou convencido de que em
pouquíssimo tempo as famílias pecadoras se tornariam conscientes da
imperdoável crueza do seu actual comportamento e regressariam aos
valores transcendentes que ainda não há muito tempo eram os seus
mais sólidos alicerces, As minhas dúvidas aumentam a cada minuto,
agora pergunto-me se não deveria antes entregar-lhe a pasta da cultura,
ou a dos cultos, para a qual também lhe encontro certa vocação, ou
então, senhor primeiro-ministro, reunir as três pastas no mesmo
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ministério, E já agora também a de economia, sim, por aquilo dos vasos
comunicantes, Para o que não serviria, meu caro, seria para a
propaganda, essa ideia de uma campanha de publicidade que fizesse
regressar as famílias ao redil das almas sensíveis é um perfeito
disparate, Porquê, senhor primeiro-ministro, Porque, em realidade,
campanhas desse tipo só aproveitam a quem cobrou por elas, Temos
feito muitas, sim, com os resultados que se conhecem, além disso, para
tornar à questão que nos deve ocupar, ainda que a sua campanha viesse
a dar resultado, não seria nem para hoje nem para amanhã, e eu tenho
de tomar uma decisão agora mesmo, Aguardo as suas ordens, senhor
primeiro-ministro. o chefe do governo sorriu com desalento, Tudo isto é
ridículo, absurdo, disse, sabemos muito bem que não temos por onde
escolher e que as propostas que fizemos só serviram para agravar a
situação, sendo assim, sendo assim, e se não queremos carregar a
consciência com quatro vigilantes por dia empurrados à cacetada para o
portão de entrada da morte, não nos resta outro caminho que não seja
aceitar as condições que nos propuseram, Podíamos desencadear uma
operação policial relâmpago, uma captura fulminante, meter na cadeia
umas quantas dezenas de maphiosos, talvez conseguíssemos fazê-los
recuar, A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça,
aparar-lhe as unhas não serve de nada, Para algo serviria, Quatro
vigilantes por dia, recorde, senhor ministro do interior, quatro
vigilantes por dia, melhor é reconhecer que nos encontramos atados de
pés e mãos, A oposição vai atacar-nos com a maior violência, acusar-
nos-ão de ter vendido o país à máphia, Não dirão país, dirão pátria, Pior
ainda, Esperemos que a igreja nos queira dar uma ajuda, imagino que
deverão ser receptivos ao argumento de que, além de lhe fornecermos
uns quantos mortos úteis, foi para salvar vidas que tomámos esta
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decisão, Já não se pode dizer salvar vidas, senhor primeiro-ministro,
isso era antes, Tem razão, vai ser preciso inventar outra expressão.
Houve um silêncio. Depois o chefe do governo disse, Acabemos com
isto, dê as necessárias instruções ao seu director de serviço e comece a
trabalhar no plano de desactivação, também precisamos de saber quais
são as ideias da máphia sobre a distribuição territorial dos vinte e cinco
por cento de vigilantes que constituirão o numerus clausus, Trinta e
cinco por cento, senhor primeiro-ministro, Não lhe agradeço que me
tenha recordado que a nossa derrota ainda foi maior do que aquela que
desde o princípio já parecia inevitável, É um dia triste, As famílias dos
quatro seguintes vigilantes, se soubessem o que se está a passar aqui,
não lhe chamariam assim, E pensarmos nós que esses quatro vigilantes
poderão estar amanhã a trabalhar para a máphia, Assim é a vida, meu
caro titular do ministério dos vasos comunicantes, Do interior, senhor
primeiro-ministro, do interior, Esse é o depósito central.
Poder-se-ia pensar que, após tantas e tão vergonhosas cedências
como haviam sido as do governo durante o sobe-e-desce das transac-
ções com a máphia, indo ao extremo de consentir que humildes e
honestos funcionários públicos passassem a trabalhar a tempo inteiro
para a organização criminosa, poder-se-ia pensar, dizíamos, que já não
seriam possíveis maiores baixezas morais. Infelizmente, quando se
avança às cegas pelos pantanosos terrenos da realpolitik, quando o
pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao
que está escrito na pauta, o mais certo é que a lógica imperativa do
aviltamento venha a demonstrar, afinal, que ainda havia uns quantos
degraus para descer. Através do ministério competente, o da defesa,
chamado da guerra em tempos mais sinceros, foram despachadas
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instruções para que as forças do exército que haviam sido colocadas ao
longo da fronteira se limitassem a vigiar as estradas principais, em
especial aquelas que dessem saída para os países vizinhos, deixando
entregues à sua bucólica paz as de segunda e terceira categoria, e
também, por maioria de razões, a miúda rede dos caminhos vicinais,
das veredas, das azinhagas, dos carreiros e dos atalhos. Como não
podia deixar de ser, isto significou o regresso a quartéis da maior parte
dessas forças, o que, se é verdade ter dado um alegrão à tropa rasa,
incluindo cabos e furriéis, fartos, todos eles, de sentinelas e rondas
diurnas e nocturnas, veio causar, muito pelo contrário, um declarado
descontentamento na classe de sargentos, pelos vistos mais conscientes
que o restante pessoal da importância dos valores de honra militar e de
serviço à pátria. No entanto, se o movimento capilar desse desgosto
pôde ascender até aos alferes, se depois perdeu um tanto do seu ímpeto
à altura dos tenentes, o certo é que tornou a ganhar força, e muita,
quando alcançou o nível dos capitães. Claro que nenhum deles se
atreveria a pronunciar em voz alta a perigosa palavra máphia, mas,
quando debatiam uns com os outros, não podiam evitar a lembrança de
como nos dias anteriores à desmobilização tinham sido interceptadas
numerosas furgonetas que transportavam enfermos terminais, as quais
levavam ao lado do condutor um vigilante oficialmente credenciado
que, antes mesmo que lho pedissem, exibia, com todos os necessários
timbres, assinaturas e carimbos apostos, um papel em que, por motivo
de interesse nacional, expressamente se autorizava a deslocação do
padecente fulano de tal a destino não especificado, mais se determi-
nando que as forças militares deveriam considerar-se obrigadas a
prestar toda a colaboração que lhes fosse solicitada, com vista a garantir
aos ocupantes de cada furgoneta a perfeita efectividade da operação de