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traslado. Nada disto poderia suscitar dúvidas no espírito dos dignos
sargentos se, pelo menos em sete casos, não se tivesse dado a estranha
casualidade de o vigilante haver piscado um olho ao soldado no preciso
momento em que lhe passava o documento para verificação. Conside-
rando a dispersão geográfica dos lugares em que estes episódios da
vida de campanha tinham ocorrido, foi imediatamente posta de parte a
hipótese de se tratar de um gesto, digamo-lo assim, equívoco, algo que
tivesse que ver com os manejos da mais primária sedução entre pessoas
do mesmo sexo ou de sexos diferentes, para o caso tanto fazia. o
nervosismo de que os vigilantes deram então claras mostras, uns mais
do que outros, é certo. mas todos de tal maneira que mais pareciam
estar a deitar uma garrafa ao mar com um papel lá dentro a pedir
socorro, foi o que levou a perspicaz corporação dos sargentos a pensar
que nas furgonetas iria escondido aquele sobre todos famoso gato que
sempre arranja modo de deixar a ponta do rabo de fora quando quer
que o descubram. Viera depois a inexplicável ordem de regresso aos
quartéis, logo uns zunzuns aqui e além, nascidos não se sabe como nem
onde, mas que alguns alvissareiros, em confidência, insinuavam poder
ser o próprio ministério do interior. os jornais da oposição fizeram-se
eco do mau ambiente que estaria a respirar-se nos quartéis, os jornais
afectos ao governo negaram veementemente que tais miasmas estives-
sem a envenenar o espírito de corpo das forças armadas, mas o certo é
que os rumores de que um golpe militar estaria em preparação, embora
ninguém soubesse explicar porquê e para quê, cresceram por toda a
parte e fizeram com que, de momento, tivesse passado a um segundo
plano de interesse público o problema dos enfermos que não morriam.
Não que ele estivesse esquecido, como o provava uma frase então posta
a circular e muito repetida pelos frequentadores dos cafés, Ao menos,
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dizia-se, mesmo que venha a haver um golpe militar, de uma cousa
poderemos estar certos, por mais tiros que derem uns nos outros não
conseguirão matar ninguém. Esperava-se a todo o momento um dramá-
tico apelo do rei à concórdia nacional, uma comunicação do governo
anunciando um pacote de medidas urgentes, uma declaração dos altos
comandos do exército e da aviação, porque, não havendo mar, marinha
também não havia, protestando fidelidade absoluta aos poderes legiti-
mamente constituídos, um manifesto dos escritores, uma tomada de
posição dos artistas, um concerto solidário, uma exposição de cartazes
revolucionários, uma greve geral promovida em conjunto pelas duas
centrais sindicais, uma pastoral dos bispos chamando à oração e ao
jejum, uma procissão de penitentes, uma distribuição maciça de
panfletos amarelos, azuis, verdes, vermelhos, brancos, chegou mesmo a
falar-se em convocar uma gigantesca manifestação na qual
participassem os milhares de pessoas de todas as idades e condições
que se encontravam em estado de morte suspensa, desfilando pelas
principais avenidas da capital em macas, carrinhos de mão, ambu-
lâncias ou às costas dos filhos mais robustos, com uma faixa enorme à
frente do cortejo, que diria, sacrificando nada menos que quatro
vírgulas à eficácia do dístico, Nós que tristes aqui vamos, a vós todos
felizes esperamos. Afinal, nada disto veio a ser necessário. É verdade
que as suspeitas de um envolvimento directo da máphia no transporte
de doentes não se dissiparam, é verdade que viriam mesmo a reforçar-
se à luz de alguns dos sucessos subsequentes, mas uma só hora iria
bastar para que a súbita ameaça do inimigo externo sossegasse as
disposições fratricidas e reunisse os três estados, clero, nobreza e povo,
ainda vigentes no país apesar do progresso das ideias, à volta do seu rei
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e, se bem que com certas justificadas reticências, do seu governo. o caso,
como quase sempre, conta-se em breves palavras.
Irritados pela contínua invasão dos seus territórios por comandos de
enterradores, maphiosos ou espontâneos, vindos daquela terra aberran-
te em que ninguém morria, e depois de não poucos protestos
diplomáticos que de nada serviram, os governos dos três países
limítrofes resolveram, numa acção concertada, fazer avançar as suas
tropas e guarnecer as fronteiras, com ordem taxativa de dispararem ao
terceiro aviso. Vem a propósito referir que a morte de uns quantos
maphiosos abatidos praticamente à queima-roupa depois deterem
atravessado a linha de separação, sendo o que costumamos chamar os
ossos do ofício, foi imediato pretexto para que a organização subisse os
preços da sua tabela de prestação de serviços na rubrica de segurança
pessoal e riscos operativos.
Mencionado este elucidativo pormenor sobre o funcionamento da
administração maphiosa, passemos ao que importa. uma vez mais,
rodeando numa manobra táctica impecável as hesitações do governo e
as dúvidas dos altos comandos das forças armadas, os sargentos
retomaram a iniciativa e foram, à vista de toda a gente, os promotores. e
em consequência também os heróis, do movimento popular de protesto
que saiu de casa para exigir, em massa nas praças, nas avenidas e nas
ruas, o regresso imediato das tropas à frente de batalha. Indiferentes,
impassíveis perante os gravíssimos problemas com que a pátria de
aquém se debatia, a braços com a sua quádrupla crise, demográfica,
social, política e económica, os países de além tinham finalmente
deixado cair a máscara e mostravam-se à luz do dia como seu
verdadeiro rosto, o de duros conquistadores e implacáveis imperia-
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listas. o que eles têm é inveja de nós, dizia-se nas lojas e nos lares,
ouvia-se na rádio e na televisão, lia-se nos jornais, o que eles têm é
inveja de que na nossa pátria não se morra, por isso nos querem invadir
e ocupar o temtório para não morrerem também. Em dois dias, a
marchas forçadas e de bandeiras ao vento, cantando canções patrióticas
como a marselhesa, o ça ira, a maria da fonte, o hino da carta, o não verás
país nenhum, a banniera rossa, a portuguesa, o god save the king, a
internacional, o deutschland über alles, o chant du marais, as stars and
stripes, os soldados voltaram aos postos de onde tinham vindo, e aí,
armados até aos dentes, aguardaram a pé firme o ataque e a glória. Não
houve. Nem a glória, nem o ataque. Pouco de conquistas e ainda menos
de impérios, o que os ditos países limítrofes pretendiam era tão-
somente que não lhes fossem lá enterrar sem autorização esta nova
espécie de imigrantes forçados, e, ainda se lá fossem só para enterrar, vá
que não vá, mas iam igualmente para matar, assassinar, eliminar,
apagar, porquanto era naquele exacto e fatídico momento em que, de
pés para a frente para que a cabeça pudesse dar-se conta do que estava
a passar-se com o resto do corpo, atravessavam a fronteira, que os
infelizes se finavam, soltavam o último suspiro. Postos estão frente a