frente os dois valerosos campos, mas também desta vez o sangue não
irá chegar ao rio. E olhem que não foi por vontade dos soldados do lado
de cá, porque esses tinham a certeza de que não morreriam mesmo que
uma rajada de metralhadora os cortasse ao meio. Ainda que por mais
do que legítima curiosidade científica devamos perguntar-nos como
poderiam sobreviver as duas partes separadas naqueles casos em que o
estômago ficasse para um lado e os intestinos para outro. seja como for,
só a um perfeito louco varrido lhe ocorreria a ideia de dar o primeiro
tiro. E esse, a deus graças, não chegou a ser disparado. Nem sequer a
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circunstância de alguns soldados do outro lado terem decidido desertar
para o eldorado em que não se morre teve outra consequência que
serem devolvidos imediatamente à origem, onde já um conselho de
guerra estava à sua espera. o facto que acabámos de referir é de todo
irrelevante para o decurso da trabalhosa história que vimos narrando e
dele não voltaremos a falar, mas, ainda assim, não quisemos deixá-lo
entregue à escuridão do tinteiro. o mais provável é que o conselho de
guerra resolva a priori não tomar em conta nas suas deliberações o
ingénuo anseio de vida eterna que desde sempre habita no coração
humano, Aonde é que isto iria parar se todos passássemos a viver
eternamente, sim, aonde é que isto iria parar, perguntará a acusação
usando de um golpe da mais baixa retórica, e a defesa, escusado será o
aditamento, não teve espírito para encontrar uma resposta à altura da
ocasião, ela também não tinha nenhuma ideia de aonde iria parar.
Espera-se que, ao menos, não venham a fuzilar os pobres diabos. Então
seria caso para dizer que haviam ido por lã e de lá vieram prontos para
a tosquia.
Mudemos de assunto. Falando das desconfianças dos sargentos e dos
seus aliados alferes e capitães sobre uma responsabilidade directa da
máphia no transporte dos padecentes para a fronteira, havíamos
adiantado que essas desconfianças se viram reforçadas por uns quantos
subsequentes sucessos. É o momento de revelar quais eles foram e como
se desenrolaram. A exemplo do que havia feito a família de pequenos
agricultores iniciadora do processo, o que a máphia tem feito é simples-
mente atravessar a fronteira e enterrar os mortos, cobrando por isto um
dinheirame. Com outra diferença, a de que o faz sem atender à beleza
dos sítios e sem se preocupar em apontar no canhenho da operação as
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referências topográficas e orográficas que no futuro pudessem auxiliar
os familiares chorosos e arrependidos da sua malfetria a encontrar a
sepultura e pedir perdão ao morto. ora, não será preciso ser-se dotado
de uma cabeça especialmente estratégica para compreender que os
exércitos alinhados no outro lado das três fronteiras tinham passado a
constituir um sério obstáculo a uma prática sepulcrária que decorrera
até aí na mais perfeita das seguranças.
Não seria a máphia o que é, se não tivesse encontrado a solução do
problema. É realmente uma lástima, permita-se-nos o comentário à
margem, que tão brilhantes inteligências como as que dirigem estas
organizações criminosas se tenham afastado dos rectos caminhos do
acatamento à lei e desobedecido ao sábio preceito bíblico que mandava
que ganhássemos o pão com o suor do nosso rosto, mas os factos são os
factos, e ainda que repetindo a palavra magoada do adamastor, oh, que
não sei de nojo como o conte, deixaremos aqui a compungida notícia do
ardil de que a máphia se serviu para obviar a uma dificuldade para a
qual, segundo todas as aparências, não se via nenhuma saída. Antes de
prosseguirmos convirá esclarecer que o termo nojo, posto pelo épico na
boca do infeliz gigante, significava então, e só, tristeza profunda, pena,
desgosto, mas, de há tempos a esta pane, o vulgar da gente considerou,
e muito bem, que se estava a perder ali uma estupenda palavra para
expressar sentimentos como sejam a repulsa, a repugnância, o asco, os
quais, como qualquer pessoa reconhecerá, nada têm que ver com os
enunciados acima. Com as palavras todo o cuidado é pouco, mudam de
opinião como as pessoas. Claro que o do ardil não foi encher, atar e pôr
ao fumeiro, o assunto teve de dar as suas voltas, meteu emissários com
bigodes postiços e chapéus de aba derrubada, telegramas cifrados,
diálogos através de linhas secretas, por telefone vermelho, encontros em
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encruzilhadas à meia-noite, bilhetes debaixo da pedra, tudo o de que
mais ou de menos já nos havíamos apercebido nas outras negociações,
aquelas em que, por assim dizer, se jogaram os vigilantes aos dados. E
também não se pode pensar que se tratou, como no outro caso, de
transacções simplesmente bilaterais. Além da máphia deste país em que
não se morre, participaram igualmente nas conversações as máphias
dos países limítrofes, pois essa era a única maneira de resguardar a
independência de cada organização criminosa no quadro nacional em
que operava e do seu respectivo governo. Não teria qualquer aceitação,
seria mesmo absolutamente repreensível, que a máphia de um desses
países se pusesse a negociar em directo com a administração de outro
país. Apesar de tudo, as cousas ainda não chegaram a esse ponto, tem-
no impedido até agora, como um último pudor, o sacrossanto princípio
da soberania nacional, tão importante para as máphias como para os
governos, o que, sendo mais ou menos óbvio no que a estes respeita,
seria bastante duvidoso em relação àquelas associações criminosas se
não tivéssemos presente com que ciumenta brutalidade costumam elas
defender os seus territórios das ambições hegemónicas dos seus colegas
de ofício. Coordenar tudo isto, conciliar o geral com o particular, equi-
librar os interesses de uns com os interesses dos outros, não foi tarefa
fácil, o que explica que durante duas longas e aborrecidas semanas de
espera os soldados tivessem passado o tempo a insultar-se pelos
altifalantes, tendo em todo o caso o cuidado de não ultrapassar certos
limites, de não exagerar no tom, não fosse a ofensa subir à cabeça de
algum tenente-coronel susceptível e arder tróia. o que mais contribuiu
para complicar e demorar as negociações foi o facto de nenhuma das
máphias dos outros países dispor de vigilantes para fazer com eles o
que entendesse, faltando-lhes, consequentemente, o irresistível meio de
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pressão que tão bons resultados havia dado aqui. Embora este lado
obscuro das negociações não tenha chegado a transpirar, a não ser pelos
zunzuns de sempre, existem fortes presunções de que os comandos
intermédios dos exércitos dos países limítrofes, com o indulgente
beneplácito do ramo superior da hierarquia, se tenham deixado
convencer, só deus sabe a que preço, pela argumentação dos porta-
vozes das máphias locais, no sentido de fechar os olhos às
indispensáveis manobras de ir e vir, de avançar e recuar, em que a
solução do problema afinal consistia. Qualquer criança teria sido capaz
da ideia, mas, para a tornar efectiva, era necessário que, chegada à
idade a que chamamos da razão, tivesse ido bater à porta da secção de
recrutamento da máphia para dizer, Trouxe-me a vocação, cumpra-se