em mim a vossa vontade.
os amantes da concisão, do modo lacónico, da economia de
linguagem, decerto se estarão perguntando porquê, sendo a ideia assim
tão simples, foi preciso todo este arrazoado para chegarmos enfim ao
ponto crítico. A resposta também é simples, e vamos dá-la utilizando
um termo actual, moderníssimo, com o qual gostaríamos de ver
compensados os arcaísmos com que, na provável opinião de alguns,
temos salpicado de mofo este relato, Por mor do background. Dizendo
background, toda a gente sabe do que se trata, mas não nos faltariam
dúvidas se, em vez de background, tivéssemos chochamente dito plano
de fundo, esse aborrecível arcaísmo, ainda por cima pouco fiel à
verdade, dado que o background não é apenas o plano de fundo, é toda
a inumerável quantidade de planos que obviamente existem entre o
sujeito observado e a linha do horizonte. Melhor será então que lhe
chamemos enquadramento da questão. Exactamente, enquadramento
da questão, e agora que finalmente a temos bem enquadrada, agora sim,
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chegou a altura de revelar em que consistiu o ardil da máphia para
obviar qualquer hipótese de um conflito bélico que só iria servir para
prejudicar os seus interesses. uma criança, já o havíamos dito antes,
poderia ter tido a ideia. A qual não era senão isto, passar para o outro
lado da fronteira o padecente e, uma vez falecido ele, voltar para trás e
enterrá-lo no materno seio da sua terra de origem. um xeque-mate
perfeito no mais rigoroso, exacto e preciso sentido da expressão. Como
se acaba de ver, o problema ficava resolvido sem desdouro para
qualquer das partes implicadas, os quatro exércitos, já sem motivo para
se manterem em pé de guerra na fronteira, podiam retirar-se à boa paz,
uma vez que o que a máphia se propunha fazer era simplesmente entrar
e sair, lembremos uma vez mais que os padecentes perdiam a vida no
mesmo instante em que os transportavam ao outro lado, a partir de
agora não precisarão de lá ficar nem um minuto, é só aquele tempo de
morrer, e esse, se sempre foi de todos o mais breve, um suspiro, e já
está, pode-se imaginar bem o que passou a ser neste caso, uma vela que
de repente se apaga sem ser preciso soprar-lhe. Nunca a mais suave das
eutanásias poderá vir a ser tão fácil e tão doce. O mais interessante da
nova situação criada é que a justiça do país em que não se morre se
encontra desprovida de fundamentos para actuar judicialmente contra
os enterradores, supondo que o quisesse de facto, e não só por se
encontrar condicionada pelo acordo de cavalheiros que o governo teve
de armar com a máphia. Não os pode acusar de homicídio porque,
tecnicamente falando, homicídio não há em realidade, e porque o
censurável acto, classifique-o melhor quem disso for capaz, se comete
em países estrangeiros, nem tão-pouco os pode incriminar por haver
enterrado mortos, uma vez que o destino deles é esse mesmo, e já é para
agradecer que alguém tenha decidido encarregar-se de um trabalho a
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todos os títulos penoso, tanto do ponto de vista físico como do ponto de
vista anímico. Quando muito, poderia alegar que nenhum médico
esteve presente para certificar o óbito, que o enterramento não cumpriu
as formas prescritas para uma correcta inumação e que, como se tal caso
fosse inédito, a sepultura não só não está identificada como com toda a
certeza se lhe perderá o sítio quando cair a primeira bátega forte e as
plantas romperem tenras e alegres do húmus criador. Consideradas as
dificuldades e receando tombar no tremedal de recursos em que,
curtidos na tramóia, os astutos advogados da máphia a afundariam sem
dó nem piedade, a lei resolveu esperar com paciência a ver em que
parariam as modas.
Era, sem sombra de dúvida, a atitude mais prudente. o país
encontra-se agitado como nunca, o poder confuso, a autoridade diluída,
os valores em acelerado processo de inversão, a perda do sentido de
respeito cívico alastra a todos os sectores da sociedade, provavelmente
nem deus saberá aonde nos leva. Corre o rumor de que a máphia está a
negociar um outro acordo de cavalheiros com a indústria funerária com
vista a uma racionalização de esforços e a uma distribuição de tarefas, o
que significa, em linguagem de trazer por casa, que ela se encarrega de
fornecer os mortos, contribuindo as agências funerárias com os meios e
a técnica para enterrá-los. Também se diz que a proposta da máphia foi
acolhida de braços abertos pelas agências, já cansadas de malgastar o
seu saber de milénios, a sua experiência, o seu know how, os seus coros
de carpideiras, a fazer funerais a cães, gatos e canários, alguma vez uma
catatua, uma tartaruga catatónica, um esquilo domesticado, um lagarto
de estimação que o dono tinha o costume de levar ao ombro. Nunca
caímos tão baixo, diziam. Agora o futuro apresentava-se forte e risonho,
as esperanças floresciam como canteiros de jardim, podendo até dizer-
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se, arriscando o óbvio paradoxo, que para a indústria dos enterros havia
despontado finalmente uma nova vida. E tudo isto graças aos bons
préstimos e à inesgotável caixa-forte da máphia. Ela subsidiou as
agências da capital e de outras cidades do país para que instalassem
filiais, a troco de compensações, claro está, nas localidades mais
próximas das fronteiras, ela tomou providências para que houvesse
sempre um médico à espera do falecido quando ele reentrasse no
território e precisasse de alguém para dizer que estava morto, ela
estabeleceu convénios com as administrações municipais para que os
enterros a seu cargo tivessem prioridade absoluta, fosse qual fosse a
hora do dia ou da noite em que lhe conviesse fazê-los. Tudo isto custava
muito dinheiro, naturalmente, mas o negócio continuava a valer a pena,
agora que os adicionais e os serviços extras tinham passado a constituir
o grosso da factura. De repente, sem avisar, fechou-se a torneira donde
havia estado brotando, constante, o generoso manancial de padecentes
terminais. Parecia que as famílias, por um rebate de consciência, tinham
passado palavra umas às outras, que se acabou isso de mandar os entes
queridos a morrer longe, se, em sentido figurado, lhes tínhamos comido
a carne, também agora os ossos lhes haveremos de comer, que não
estávamos aqui só para as horas boas, quando ele ou ela tinham a força
e a saúde intactas, estamos igualmente para as horas más e para as
horas péssimas, quando ela ou ele não são mais que um trapo fedorento
que é inútil lavar. As agências funerárias transitaram da euforia ao
desespero, outra vez a ruína, outra vez a humilhação de enterrar
canários e gatos, cães e a restante bicharada, a tartaruga, a catatua, o
esquilo, o lagarto não, porque não existia outro que se deixasse levar ao
ombro do dono. Tranquila, sem perder os nervos, a máphia foi ver o
que se passava. Era simples. Disseram-lhe as familias, quase sempre em
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meias palavras, dando só a entender, que uma cousa tinha sido o tempo
da clandestinidade, quando os entes queridos eram levados a ocultas,
pela calada da noite, e os vizinhos não tinham precisão nenhuma de
saber se permaneciam no seu leito de dor, ou se se tinham evaporado.