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Era fácil mentir, dizer compungidamente, Coitadinho, lá está, quando a

vizinha perguntasse no patamar da escada, E então como vai o

avôzinho. Agora tudo seria diferente, haveria uma certidão de óbito,

haveria chapas com nomes e apelidos nos cemitérios, em poucas horas a

invejosa e maledicente vizinhança saberia que o avôzinho tinha morrido

da única maneira que se podia morrer, e que isso significava,

simplesmente, que a própria cruel e ingrata família o havia despachado

para a fronteira. Dá-nos muita vergonha, confessaram. A máphia ouviu,

ouviu, e disse que ia pensar. Não tardou vinte e quatro horas. seguindo

o exemplo do ancião da página quarenta e três, os mortos tinham

querido morrer, portanto seriam registados como suicidas na certidão

de óbito. A torneira tornou a abrir-se.

Nem tudo foi tão sórdido neste país em que não se morre como o

que acabou de ser relatado, nem em todas as parcelas de uma sociedade

dividida entre a esperança de viver sempre e o temor de não morrer

nunca conseguiu a voraz máphia cravar as suas garras aduncas,

corrompendo almas, submetendo corpos, emporcalhando o pouco que

ainda restava dos bons princípios de antanho, quando um sobrescrito

que trouxesse dentro algo que cheirasse a suborno era no mesmo

instante devolvido à procedência, levando uma resposta firme e clara,

algo assim como, Compre brinquedos para os seus filhos com esse

dinheiro, ou, Deve ter-se equivocado no destinatário. A dignidade era

então uma forma de altivez ao alcance de todas as classes. Apesar de

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tudo, apesar dos falsos suicidas e dos sujos negócios da fronteira, o

espírito de aqui continuava a pairar sobre as águas, não as do mar

oceano, que esse banhava outras terras longe, mas sobre os lagos e os

rios, sobre as ribeiras e os regatos, nos charcos que a chuva deixava ao

passar, no luminoso fundo dos poços, que é onde melhor se percebe a

altura a que está o céu, e, por mais extraordinário que pareça, também

sobre a superfície tranquila dos aquários. Precisamente, foi quando,

distraído, olhava o peixinho vermelho que viera boquejar à tona de

água e quando se perguntava, já menos distraído, desde há quanto

tempo é que não a renovava, bem sabia o que queria dizer o peixe

quando uma vez e outra subia a romper a delgadíssima película em que

a água se confunde com o ar, foi precisamente nesse momento reve-

lador que ao aprendiz de filósofo se lhe apresentou, nítida e nua, a

questão que iria dar origem à mais apaixonante e acesa polémica que se

conhece de toda a história deste país em que não se morre. Eis o que o

espírito que pairava sobre a água do aquário perguntou ao aprendiz de

filósofo, Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos,

sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a

erva rasteira que se pisa e a sequoia dendron giganteum com os seus

cem metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que

sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a

perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter

fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido

a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da

lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-

seda porque está vivo na borboleta. o aprendiz de filósofo respondeu, o

bicho-da-seda não morreu, a borboleta é que morrerá, depois de deso-

var, Já o sabia eu antes que tu tivesses nascido, disse o espírito que paira

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sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do

casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o

disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, toda a

gente sabe de que se trata, disse condescendente o aprendiz de filósofo,

Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes

metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são

rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como

são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque

os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes

deste, Qual de nós dois é o filósofo, Nem eu nem tu, tu não passas de

um aprendiz de filosofia, e eu apenas sou o espírito que paira sobre a

água do aquário, Falávamos da morte, Não da morte, das mortes,

perguntei por que razão não estão morrendo os seres humanos, e os

outros animais, sim, por que razão a não-morte de uns não é a não-

morte de outros, quando a este peixinho vermelho se lhe acabar a vida,

e tenho que avisar-te que não tardará muito se não lhe mudares a água,

serás tu capaz de reconhecer na morte dele aquela outra morte de que

agora pareces estar a salvo, ignorando porquê, Antes, no tempo em que

se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que

haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de

que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria

morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela

pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, suponho que

com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é,

Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram,

existem e existirão, De certo modo, sim, Estás a contradizer-te,

exclamou o aprendiz de filósofo, As mortes de cada um são mortes por

assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem

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mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se

ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie, Há

portanto uma hierarquia, suponho que sim, E para os animais, desde o

mais elementar protozoário à baleia azul, Também, E para os vegetais,

desde o bacteriófito à sequóia gigante, esta citada antes em latim por

causa do tamanho, Tanto quanto creio saber, o mesmo se passa com

todos eles, Isto é, cada um com a sua morte própria, pessoal e intrans-

missível, sim, E depois mais duas mortes gerais, uma para cada reino da

natureza, Exacto, E acaba-se aí a distribuição hierárquica das compe-

tências delegadas por tânatos, perguntou o aprendiz de filósofo, Até

onde a minha imaginação consegue chegar, ainda vejo uma outra

morte, a última, a suprema, Qual, Aquela que haverá de destruir o

universo, essa que realmente merece o nome de morte, embora quando

isso suceder já não se encontre ninguém aí para pronunciá-lo, o resto de

que temos estado a falar não passa de pormenores ínfimos, de insigni-

ficâncias, Portanto, a morte não é única, Concluiu desnecessariamente o

aprendiz de filósofo, É o que já estou cansado de te explicar, Quer dizer,

uma morte, aquela que era nossa, suspendeu a actividade, as outras, as

dos animais e dos vegetais, continuam a operar, são independentes,

cada uma trabalhando no seu sector, Já estás convencido, sim, Vai então

e anuncia-o a toda a gente, disse o espírito que pairava sobre a água do

aquário. E foi assim que a polémica começou.

o primeiro argumento contra a ousada tese do espírito que pairava

sobre a água do aquário foi que o seu porta-voz não era filósofo

encartado, mas um mero aprendiz que nunca havia ido além de alguns