escassos rudimentos de manual, quase tão elementares como o
protozoário, e, como se isso ainda fosse pouco, apanhados aqui e além,
69
aos retalhos, soltos, sem agulha e linha que os unisse entre si ainda que
as cores e as formas contendessem umas com as outras, enfim, uma
filosofia do que poderia chamar-se a escola arlequinesca, ou ecléctica. A
questão, porém, não estava tanto aí. É certo que o essencial da tese
havia sido obra do espírito que pairava sobre a água do aquário, porém,
bastará tomar a ler o diálogo desenvolvido nas duas páginas anteriores
para reconhecer que a contribuição do aprendiz de filosofias também
teve a sua influência na gestação da interessante ideia, pelo menos na
qualidade de ouvinte, factor dialéctico indispensável desde sócrates,
como é por de mais sabido. Algo, pelo menos, não podia ser negado,
que os seres humanos não morriam, mas os outros animais sim.
Quanto aos vegetais, qualquer pessoa, mesmo sem saber nada de
botânica, reconheceria sem dificuldade que, tal como antes, nasciam,
verdeavam, mais adiante murchavam, logo secavam, e se a essa fase
final, com podridão ou sem ela, não se lhe deveria chamar morrer,
então que viesse alguém que o explicasse melhor. Que as pessoas daqui
não estejam a morrer, mas todos os outros seres vivos sim, diziam
alguns objectores, só há que vê-lo como demonstração de que o normal
ainda não se retirou de todo do mundo, e o normal, escusado seria dizê-
lo, é, pura e simplesmente, morrer quando nos chegou a hora. Morrer e
não pôr-se a discutir se a morte já era nossa de nascença, ou se apenas ia
a passar por ali e lhe deu para reparar em nós. Nos restantes países
continua a morrer-se e não parece que os seus habitantes sejam mais
infelizes por isso. Ao princípio, como é natural, houve invejas, houve
conspirações, deu-se um ou outro caso de tentativa de espionagem
científica para descobrir como o havíamos conseguido, mas, à vista dos
problemas que desde então nos caíram em cima, cremos que o senti-
70
mento da generalidade da população desses países se poderá traduzir
por estas palavras, Do que nós nos livrámos.
A igreja, como não podia deixar de ser, saiu à arena do debate
montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus
são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e
algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido
espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro.
Dizia também a igreja que a suspensão temporal e mais ou menos
duradoura de causas e efeitos naturais não era propriamente uma
novidade, bastaria recordar os infinitos milagres que deus havia
permitido se fizessem nos últimos vinte séculos, a única diferença do
que se passa agora está na amplitude do prodígio, pois que o que antes
tocava de preferência o indivíduo, pela graça da sua fé pessoal, foi
substituído por uma atenção global, não personalizada, um país inteiro
por assim dizer possuidor do elixir da imortalidade, e não somente os
crentes, que como é lógico esperam ser em especial distinguidos, mas
também os ateus, os agnósticos, os heréticos, os relapsos, os incréus de
toda a espécie, os afeiçoados a outras religiões, os bons, os maus e os
piores, os virtuosos e os maphiosos, os verdugos e as vítimas, os
polícias e os ladrões, os assassinos e os dadores de sangue, os loucos e
os sãos de juízo, todos, todos sem excepção, eram ao mesmo tempo as
testemunhas e os beneficiários do mais alto prodígio alguma vez obser-
vado na história dos milagres, a vida eterna de um corpo eternamente
unida à eterna vida da alma. A hierarquia católica, de bispo para cima,
não achou nenhuma graça a estes chistes místicos de alguns dos seus
quadros médios sedentos de maravilhas, e fê-lo saber por meio de uma
muito firme mensagem aos fiéis, na qual, além da inevitável referência
71
aos impenetráveis desígnios de deus, insistia na ideia que já havia sido
expressa de improviso pelo cardeal logo às primeiras horas da crise na
conversação telefónica que tivera com o primeiro-ministro, quando,
imaginando-se papa e rogando a deus que lhe perdoasse a estulta
presunção, tinha proposto a imediata promoção de uma nova tese, a da
morte adiada, fiando-se na tantas vezes louvada sabedoria do tempo,
aquela que nos diz que sempre haverá um amanhã qualquer para
resolver os problemas que hoje pareciam não ter solução. Em carta ao
director do seu jornal preferido, um leitor declarava-se disposto a
aceitar a ideia de que a morte havia decidido adiar-se a si mesma, mas
solicitava, com todo o respeito, que lhe dissessem como o tinha sabido a
igreja, e, se realmente estava tão bem informada, então também deveria
saber quanto tempo iria durar o adiamento. Em nota da redacção, o
jornal recordou ao leitor que se tratava somente de uma proposta de
acção, aliás não levada à prática até agora, o que quererá dizer, assim
concluía, que a igreja sabe tanto do assunto como nós, isto é, nada.
Nesta altura alguém escreveu um artigo a reclamar que o debate
regressasse à questão que lhe havia dado origem, ou seja, se sim ou não
a morte era uma ou várias, se era singular, morte, ou plural, mortes, e,
aproveitando que estou com a mão na pluma, denunciar que a igreja,
com essas suas posições ambíguas, o que pretende é ganhar tempo sem
se comprometer, por isso se pôs, como é seu costume, a encanar a perna
à rã, a dar uma no cravo e outra na ferradura. A primeira destas
expressões populares causou perplexidade entre os jornalistas, que
nunca tal tinham lido ou ouvido em toda a sua vida. No entanto,
perante o enigma, espevitados por um saudável afã de competição
profissional, deitaram das estantes abaixo os dicionários com que
algumas vezes se ajudavam à hora de escrever os seus artigos e notícias
72
e lançaram-se à descoberta do que estaria ali a fazer aquele batráquio.
Nada encontraram, ou melhor, sim, encontraram a rã, encontraram a
perna, encontraram o verbo encanar, mas o que não conseguiram foi
tocar o sentido profundo que as três palavras juntas por força haveriam
de ter. Até que alguém se lembrou de chamar um velho porteiro que
viera da província há muitos anos e de quem todos se riam porque,
depois de tanto tempo a viver na cidade, ainda falava como se estivesse
à lareira a contar histórias aos netos. Perguntaram-lhe se conhecia a
frase e ele respondeu que sim senhor conhecia, perguntaram-lhe se
sabia o que significava e ele respondeu que sim senhor sabia. Então
explique lá, disse o chefe da redacção, Encanar, meus senhores, é pôr
talas em ossos partidos, Até aí sabemos nós, o que queremos é que nos
diga que tem isso que ver com a rã, Tem tudo, ninguém consegue pôr
talas numa rã, Porquê, Porque ela nunca está quieta com a perna, É isso
que quer dizer, Que é inútil tentar, ela não deixa, Mas não deve ser isso
o que está na frase do leitor, Também se usa quando levamos dema-
siado tempo a terminar um trabalho, e, se o fazemos de propósito, então
estamos a empatar, então estamos a encanar a perna à rã, Logo, a igreja