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que tinha acabado de ouvir que, sem atender a protestos nem súplicas,

Ó minha senhora, por favor, não posso, tenho de ir à farmácia, o avô

está lá à espera do remédio, empurrou o homem para dentro do carro

da reportagem, Venha, venha comigo, o seu avô já não precisa de

remédios, gritou, e logo mandou arrancar para o estúdio da televisão,

onde nesse preciso momento tudo estava a preparar-se para um debate

entre três especialistas em fenómenos paranormais, a saber, dois bruxos

conceituados e uma famosa vidente, convocados a toda a pressa para

analisarem e darem a sua opinião sobre o que já começava a ser

chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da

morte. A confiada repórter laborava no mais grave dos enganos,

porquanto havia interpretado as palavras da sua fonte informativa

como significando que o moribundo, em sentido literal, se tinha

arrependido do passo que estava prestes a dar, isto é, morrer, defuntar,

esticar o pernil, e portanto resolvera fazer marcha atrás. ora, as palavras

que o feliz neto havia efectivamente pronunciado, Como se se tivesse

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arrependido, eram radicalmente diferentes de um peremptório

Arrependeu-se. Umas quantas luzes de sintaxe elementar e uma maior

familiaridade com as elásticas subtilezas dos tempos verbais teriam

evitado o quiproquó e a consequente descompostura que a pobre moça,

rubra de vergonha e humilhação, teve de suportar do seu chefe directo.

Mal podiam imaginar, porém, ele e ela, que a tal frase, repetida em

directo pelo entrevistado e novamente escutada em gravação no

telejornal da noite, iria ser compreendida da mesma equivocada

maneira por milhões de pessoas, o que virá a ter como desconcertante

consequência, num futuro muito próximo, a criação de um movimento

de cidadãos firmemente convencidos de que pela simples acção da

vontade será possível vencer a morte e que, por conseguinte, o

imerecido desaparecimento de tanta gente no passado só se tinha

devido a uma censurável debilidade de volição das gerações anteriores.

Mas as cousas não ficarão por aqui. uma vez que as pessoas, sem que

para tal tenham de cometer qualquer esforço perceptível, irão continuar

a não morrer, um outro movimento popular de massas, dotado de uma

visão prospectiva mais ambiciosa, proclamará que o maior sonho da

humanidade desde o princípio dos tempos, isto é, o gozo feliz de uma

vida eterna cá na terra, se havia tornado em um bem para todos, como o

sol que nasce todos os dias e o ar que respiramos. Apesar de

disputarem, por assim dizer, o mesmo eleitorado, houve um ponto em

que os dois movimentos souberam pôr-se de acordo, e foi terem

nomeado para a presidência honorária, dada a sua eminente qualidade

de precursor, o corajoso veterano que, no instante supremo, havia

desafiado e derrotado a morte. Tanto quanto se sabe, não virá a ser

atribuída particular importância ao facto de o avôzinho se encontrar em

estado de coma profundo e, segundo todos os indícios, irreversível.

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Embora a palavra crise não seja certamente a mais apropriada para

caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar,

porquanto seria absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais

ordinária falar-se de crise numa situação existencial justamente

privilegiada pela ausência da morte, compreende-se que alguns

cidadãos, zelosos do seu direito a uma informação veraz, andem a

perguntar-se a si mesmos, e uns aos outros, que diabo se passa com o

governo, que até agora não deu o menor sinal de vida. É certo que o

ministro da saúde, interpelado à passagem no breve intervalo entre

duas reuniões, havia explicado aos jornalistas que, tendo em

consideração a falta de elementos suficientes de juízo, qualquer

declaração oficial seria forçosamente prematura, Estamos a coligir as

informações que nos chegam de todo o país, acrescentou, e realmente

em nenhuma delas há menção de falecimentos, mas é fácil imaginar

que, colhidos de surpresa como toda a gente, ainda não estejamos

preparados para enunciar uma primeira ideia sobre as origens do

fenómeno e sobre as suas implicações, tanto as imediatas como as

futuras. Poderia ter-se deixado ficar por aqui, o que, levando em conta

as dificuldades da situação, já seria motivo para agradecer, mas o

conhecido impulso de recomendar tranquilidade às pessoas a propósito

de tudo e de nada, de as manter sossegadas no redil seja como for, esse

tropismo que nós políticos, em particular se são governo, se tornou

numa segunda natureza, para não dizer automatismo, movimento

mecânico, levou-o a rematar a conversa da pior maneira, Como

responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me escutam

que não existe qualquer motivo para alarme, se bem entendi o que

acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não queria

parecer demasiado irónico, na opinião do senhor ministro não é

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alarmante o facto de ninguém estar a morrer, Exacto, embora por outras

palavras, foi isso mesmo o que eu disse, senhor ministro, permita-me

que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a

ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante. É natural, o

costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se

multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo. Isto é, quando

saem da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora que não se encontra

quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem

pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é

bastante paradoxal, Foi a força do hábito, reconheço que o termo alarme

não deveria ter sido chamado a este caso, Que outra palavra usaria

então o senhor ministro, faço a pergunta porque, como jornalista

consciente das minhas obrigações que me prezo de ser, me preocupa

empregar o termo exacto sempre que possível. Ligeiramente enfadado

com a insistência, o ministro respondeu secamente, Não uma, mas

quatro, Quais, senhor ministro, Não alimentemos falsas esperanças.

Teria sido, sem dúvida, uma boa e honesta manchete para o jornal do

dia seguinte, mas o director, após consultar com o seu redactor-chefe,

considerou desaconselhável, também do ponto de vista empresarial,

lançar esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe

o mesmo de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse.

No comunicado oficial, finalmente difundido já a noite ia adiantada,

o chefe do governo ratificava que não se haviam registado quaisquer

defunções em todo o país desde o início do novo ano, pedia

comedimento e sentido de responsabilidade nas avaliações e

interpretações que do estranho facto viessem a ser elaboradas, lembrava

que não deveria excluir-se a hipótese de se tratar de uma casualidade

fortuita, de uma alteração cósmica meramente acidental e sem