reais saúdes, em particular pela da rainha-mãe, aquela que na última
passagem do ano estava prestes a morrer, e afinal, como tantas e tantas
outras pessoas, ainda respira treze vezes por minuto, embora poucos
mais sinais de vida se deixem perceber no seu corpo prostrado, sob o
baldaquino do leito. sua majestade agradeceu, disse que a rainha-mãe
sofria o seu calvário com a dignidade própria do sangue que ainda lhe
corria nas veias, e logo passou aos assuntos da agenda, o primeiro dos
quais era a declaração de guerra dos republicanos. Não percebo o que é
que deu na cabeça dessa gente, disse, o país afundado na mais terrível
crise da sua história e eles a falar de mudança do regime, Eu não me
preocuparia, senhor, o que estão a fazer é aproveitar-se da situação para
difundir aquilo a que chamam as suas propostas de governo, no fundo
não passam de uns pobres pescadores de águas turvas, Com uma
lamentável falta de patriotismo, acrescente-se, Assim é, senhor, os
republicanos têm lá umas ideias sobre a pátria que só eles são capazes
de entender, se é que as entendem realmente, As ideias que tenham não
me interessam, o que quero ouvir de si é se existe alguma possibilidade
de que consigam forçar uma mudança de regime, Nem sequer têm
representação no parlamento, senhor, Refiro-me a um golpe de estado,
a uma revolução. Nenhuma possibilidade, senhor, o povo está com o
seu rei, as forças armadas são leais ao poder legítimo, Então posso ficar
descansado, Absolutamente descansado, senhor. o rei fez uma cruz na
agenda, ao lado da palavra republicanos, disse, Já está, e logo
perguntou, E que história vem a ser essa das pensões que não se pagam,
Estamos a pagá-las, senhor, o futuro é que se apresenta bastante negro,
Então devo ter lido mal, pensei que tinha havido, digamos, uma
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suspensão de pagamentos, Não, senhor, é o amanhã que se nos
apresenta altamente preocupante, Preocupante em que ponto, Em
todos, senhor, o estado pode vir a derrubar-se, simplesmente, como um
castelo de cartas, somos o único país que se encontra nessa situação,
perguntou o rei, Não, senhor, a longo prazo o problema atingirá a
todos, mas o que conta é a diferença entre morrer e não morrer, é uma
diferença fundamental, com perdão da banalidade, Não estou a
perceber, Nos outros países morre-se com normalidade, os falecimentos
continuam a controlar o caudal dos nascimentos, mas aqui, senhor, no
nosso país, senhor, ninguém morre, veja-se o caso da rainha-mãe,
parecia que se finava, e afinal aí a temos, felizmente, quero dizer, creia
que não exagero, estamos com a corda na garganta, Apesar disso
chegaram-me rumores de que algumas pessoas vão morrendo, Assim é,
senhor, mas trata-se de uma gota de água no oceano, nem todas as
famílias se atrevem a dar o passo, Que passo, Entregar os seus pade-
centes à organização que se encarrega dos suicídios, Não compreendo,
de que serve que se suicidem se não podem morrer, Estes sim, E como o
conseguem, É uma história complicada, senhor, Conte-ma, estamos sós,
No outro lado das fronteiras morre-se, senhor, Então quer dizer que
essa tal organização os leva lá, Exactamente, Trata-se de uma organi-
zação benemérita, Ajuda-nos a retardar um pouco a acumulação de
padecentes terminais, mas, como eu disse antes, é uma gota de água no
oceano, E que organização é essa. o primeiro-ministro respirou fundo e
disse, A máphia, senhor. A máphia, sim senhor, a máphia, às vezes o
estado não tem outro remédio que arranjar fora quem lhe faça os
trabalhos sujos, Não me disse nada, senhor, quis manter vossa majes-
tade à margem do assunto, assumo a responsabilidade, E as tropas que
estavam nas fronteiras, Tinham uma função a desempenhar, Que
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função, A de parecer um obstáculo à passagem dos suicidas e não o ser,
Pensei que estavam lá para impedir uma invasão.
Nunca houve esse perigo, de todo o modo estabelecemos acordos
com os governos desses países, tudo está controlado, Menos a questão
das pensões, Menos a questão da morte, senhor, se não voltarmos a
morrer não temos futuro. o rei fez uma cruz ao lado da palavra pensões
e disse, É preciso que alguma cousa aconteça, sim, majestade, é preciso
que alguma cousa aconteça.
O sobrescrito encontrava-se sobre a mesa do director-geral da
televisão quando a secretária entrou no gabinete. Era de cor violeta,
portanto fora do comum, e o papel, de tipogofrado, imitava a textura do
linho. Parecia antigo e dava a impressão de que já havia sido usado
antes. Não tinha qualquer endereço, tanto de remetente, o que às vezes
sucede, como de destinatário, o que não sucede nunca, e estava num
gabinete cuja porta, fechada à chave, acabara de ser aberta nesse
momento, e onde ninguém poderia ter entrado durante a noite. Ao dar-
lhe a volta para ver se havia algo escrito por trás, a secretária sentiu-se a
pensar, com uma difusa sensação do absurdo que era pensá-lo e tê-lo
sentido, que o sobrescrito não estava ali no momento em que ela
introduzira a chave e fizera funcionar o mecanismo da fechadura.
Disparate, murmurou, não devo ter reparado que estava aqui quando
saí ontem. Passeou os olhos pelo gabinete para ver se tudo se
encontrava em ordem e retirou-se para o seu lugar de trabalho. Na sua
qualidade de secretária, e de confiança, estaria autorizada a abrir aquele
ou qualquer outro sobrescrito, tanto mais que nele não havia qualquer
indicação de carácter restritivo, como seriam as de pessoal, reservado
ou confidencial, porém não o tinha feito, e não compreendia porquê.
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Por duas vezes se levantou da sua cadeira e foi entreabrir a porta do
gabinete. o sobrescrito continuava ali. Estou com manias, será efeito da
cor, pensou, ele que venha já e se acabe com o mistério. Referia-se ao
patrão, ao director-geral, que tardava. Eram dez horas e um quarto
quando finalmente apareceu. Não era pessoa de muitas palavras,
chegava, dava os bons-dias e imediatamente passava ao seu gabinete,
onde a secretária tinha ordem de só entrar cinco minutos depois, o
tempo que ele considerava necessário para se pôr à vontade e acender o
primeiro cigarro da manhã.
Quando a secretária entrou, o director-geral ainda estava de casaco
vestido e não fumava. segurava com as duas mãos uma folha de papel
da mesma cor do sobrescrito, e as duas mãos tremiam. Virou a cabeça
na direcção da secretária que se aproximava, mas foi como se não a
reconhecesse. De repente estendeu um braço com a mão aberta para
fazê-la parar e disse numa voz que parecia sair doutra garganta, saia
imediatamente, feche essa porta e não deixe entrar ninguém, ninguém,
ouviu, seja quem for. solícita, a secretária quis saber se havia algum
problema, mas ele cortou-lhe a palavra com violência, Não me ouviu
dizer-lhe que saísse, perguntou. E quase gritando, saia, agora, já. A
pobre senhora retirou-se com as lágrimas nos olhos, não estava
habituada a que a tratassem com estes modos, é certo que o director,
como toda a gente, tem os seus defeitos, mas é uma pessoa no geral
bem-educada, não é seu costume fazer das secretárias gato-sapato.