as ordens necessárias para que a sala seja evacuada. Regressou daí a
minutos, Já está desocupada, senhor primeiro-ministro. se não vê
inconveniente volto para o meu gabinete, Congratulo-me por não ter de
lho pedir e peço-lhe que não leve a mal estas manobras aparentemente
conspirativas pelo facto de o excluírem a si, conhecerá ainda hoje o
motivo de tantas precauções e sem precisar que eu lho diga, Com
certeza, senhor primeiro-ministro, nunca me permitiria duvidar da
bondade das suas razões, Assim se fala, meu caro. Quando o chefe de
gabinete saiu, o primeiro-ministro pegou na pasta e disse, Vamos lá. A
sala estava deserta. Em menos de um minuto a fotocópia ficou pronta.
Letra por letra, palavra por palavra, mas era outra cousa, faltava-lhe o
toque inquietante da cor violeta do papel, agora é uma missiva vulgar,
comum, daquelas do género oxalá estas regras vos encontrem de boa e
feliz saúde em companhia de toda a família, que eu, por mim, só tenho
a dizer bem da vida ao fazer desta. o primeiro-ministro entregou a
cópia ao director-geral, Aí tem, fico como original, disse, E o
comunicado do governo, quando irei recebê-lo, sente-se, que eu próprio
o redijo num instante, é simples, queridos compatriotas. o governo
considerou ser seu dever informar o país sobre uma carta que lhe
chegou hoje às mãos, um documento cujo significado e importância não
necessitam ser encarecidos, embora não estejamos em condições de
garantir a sua autenticidade, admitimos, sem querer antecipar já o seu
conteúdo, uma possibilidade de que não venha a produzir-se o que no
mesmo documento se anuncia, no entanto, para que a população não se
veja tomada de surpresa numa situação que não estará isenta de tensões
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e aspectos críticos vários, vai-se proceder de imediato à sua leitura, da
qual, com o beneplácito do governo, se encarregará o senhor director-
geral da televisão, uma palavra ainda antes de terminar, não é
necessário assegurar que, como sempre, o governo se vai manter atento
aos interesses e necessidades da população em horas que serão, sem
dúvida, das mais difíceis desde que somos nação e povo, motivo este
por que apelamos a todos vós para que conserveis a calma e a sereni-
dade de que tantas mostras haveis dado durante a sucessão de duras
provações por que passámos desde o princípio do ano, ao mesmo
tempo que confiamos em que um porvir mais benévolo nos venha
restituir a paz e a felicidade de que somos merecedores e de que desfru-
távamos antes, queridos compatriotas, lembrai-vos de que a união faz a
força, esse é o nosso lema, a nossa divisa, mantenhamo-nos unidos e o
futuro será nosso, pronto, já está, como vê, foi rápido, estes comuni-
cados oficiais não exigem grandes esforços de imaginação, quase se
poderia dizer que se redigem a si próprios, tem aí uma máquina de
escrever, copie e guarde tudo bem guardado até às nove horas da noite,
não se separe desses papéis nem por um instante, Fique tranquilo.
senhor primeiro-ministro, estou perfeitamente consciente das minhas
responsabilidades nesta conjuntura, tenha a certeza de que não se
sentirá decepcionado, Muito bem, agora pode regressar ao seu trabalho,
Permita-me que lhe faça ainda duas perguntas antes de ir-me, Adiante,
o senhor primeiro-ministro acaba de dizer que até às nove horas da
noite só duas pessoas saberão deste assunto, sim, o senhor e eu,
nenhuma outra, nem sequer o governo, E orei, se não é ousadia da
minha parte meter-me onde não sou chamado, sua majestade sabê-lo-á
ao mesmo tempo que os demais, isto, claro, no caso de estar a ver a
televisão, suponho que não irá ficar muito contente por não haver sido
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informado antes, Não se preocupe, a melhor das virtudes que exornam
os reis, refiro-me, como é óbvio, aos constitucionais, é serem pessoas
extraordinariamente compreensivas, Ah, E a outra pergunta que queria
fazer, Não é bem uma pergunta, Então, E que, sinceramente, estou
assombrado com o sangue-frio que está demonstrando, senhor
primeiro-ministro, a mim, o que vai suceder no país à meia-noite
aparece-me como uma catástrofe, um cataclismo como nunca houve
outro, uma espécie de fim do mundo, enquanto, olhando para si, é
como se estivesse a tratar de um assunto qualquer de rotina
governativa, dá tranquilamente as suas ordens, e há pouco tive até a
impressão de que havia sorrido, Estou convencido de que também o
meu caro director-geral sorriria se tivesse uma ideia da quantidade de
problemas que esta carta me vem resolver sem ter precisado de mover
um dedo, e agora deixe-me trabalhar, tenho de dar umas quantas
ordens, falar como ministro do interior para que mande pôr a polícia de
prevenção, tratarei de inventar um motivo plausível, a possibilidade de
uma alteração da ordem pública, não é pessoa para perder muito tempo
a pensar, prefere a acção, dêem-lhe acção se querem vê-lo feliz, senhor
primeiro-ministro, consinta-me que lhe diga que considero um privi-
légio sem preço ter vivido a seu lado estes momentos cruciais, Ainda
bem que o vê dessa maneira, mas poderá ficar certo de que mudaria
rapidamente de opinião se uma só palavra das que foram duas neste
gabinete, minhas ou suas, viesse a ser conhecida fora das quatro
paredes dele, Compreendo, Como um rei constitucional, sim, senhor
primeiro-ministro.
Eram quase vinte horas e trinta minutos quando o director-geral
chamou ao seu gabinete o responsável do telejornal para o informar de
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que o noticiário dessa noite iria abrir com a leitura de uma comunicação
do governo ao país, da qual, como de costume, deveria encarregar-se o
locutor que se encontrasse de serviço, após o que ele próprio, director-
geral, leria um outro documento, complementar do primeiro. se ao
responsável do telejornal o procedimento lhe pareceu anormal,
desusado, fora do costume, não o deu a perceber, limitou-se a pedir os
dois documentos para serem passados ao teleponto, esse meritório
aparelho que permite criar a presunçosa ilusão de que o comunicante se
está a dirigir directa e unicamente a cada uma das pessoas que o
escutam. o director-geral respondeu que neste caso o teleponto não iria
ser utilizado, Faremos a leitura à moda antiga, disse, e acrescentou que
entraria no estúdio às vinte horas e cinquenta e cinco minutos precisas,
momento em que entregaria o comunicado do governo ao locutor, a
quem instruções rigorosas já deveriam ter sido dadas para só abrir a
pasta que o continha quando fosse iniciar a leitura. O responsável do
telejornal pensou que, agora sim, havia motivo para mostrar um certo
interesse pelo assunto, É assim tão importante, perguntou, Em meia
hora o saberá, E a bandeira, senhor director-geral, quer que a mande
colocar atrás da cadeira onde se irá sentar, Não, nada de bandeiras, não
sou nem chefe do governo nem ministro, Nem rei, sorriu o responsável
do telejornal com um ar de lisonjeira cumplicidade como se quisesse
dar a entender que rei, sim, o era, mas da televisão nacional. o director-