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geral fez que não tinha ouvido, Pode ir, dentro de vinte minutos estarei

no estúdio, Não haverá tempo para que o maquilhem, Não quero ser

maquilhado, a leitura será bastante breve e os telespectadores, nessa

altura, terão mais cousas em que pensar que se a minha cara está

maquilhada ou não, Muito bem, o senhor director-geral manda, Em

todo ocaso, tome providências para que os focos não me ponham covas

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na cara, não gostaria que me vissem no ecrã com aspecto de desen-

terrado, hoje menos que em qualquer outra ocasião. As vinte horas e

cinquenta e cinco minutos o director-geral entrou no estúdio, entregou

ao locutor de serviço a pasta com o comunicado do governo e foi sentar-

se no lugar que lhe estava destinado. Atraídas pelo insólito da situação,

a notícia, como seria de esperar, tinha corrido, havia muitas mais

pessoas no estúdio do que era habitual. o realizador ordenou silêncio.

As vinte e uma horas exactas surgiu, acompanhado pela sua inconfun-

dível música de fundo, o fulgurante arranque do telejornal, uma

variada e velocíssima sequência de imagens com as quais se pretendia

convencer o telespectador de que aquela televisão, ao seu serviço as

vinte e quatro horas do dia, estava, como antigamente se dizia da

divindade, em toda a parte e de toda a parte mandava notícias. No

mesmo instante em que o locutor acabou de ler o comunicado do

governo, a câmara número dois pôs o director-geral no ecrã. Notava-se

que estava nervoso, que tinha a garganta apertada. Pigarreou um pouco

para limpar a voz e começou a ler, senhor director-geral da televisão

nacional, estimado senhor, para os efeitos que as pessoas interessadas

tiverem por convenientes venho informar de que a partir da meia-noite

de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios,

desde o princípio dos tempos e até ao dia trinta e um de dezembro do

ano passado, devo explicar que a intenção que me levou a interromper a

minha actividade, a parar de matar, a embainhar a emblemática

gadanha que imaginativos pintores e gravadores doutro tempo me

puseram na mão, foi oferecer a esses seres humanos que tanto me

detestam uma pequena amostra do que para eles seria viver sempre,

isto é, eternamente, embora, aqui entre nós dois, senhor director-geral

da televisão nacional, eu tenha de confessar a minha total ignorância

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sobre se as duas palavras, sempre e eternamente, são tão sinónimas

quanto em geral se crê, ora bem, passado este período de alguns meses

a que poderíamos chamar de prova de resistência ou de tempo gratuito

e tendo em conta os lamentáveis resultados da experiência, tanto de um

ponto de vista moral, isto é, filosófico, como de um ponto de vista prag-

mático, isto é, social, considerei que o melhor para as famílias e para a

sociedade no seu conjunto, quer em sentido vertical, quer em sentido

horizontal, seria vir a público reconhecer o equivoco de que sou respon-

sável e anunciar o imediato regresso à normalidade, o que significará

que a todas aquelas pessoas que já deveriam estar mortas, mas que, com

saúde ou sem ela, permaneceram neste mundo, se lhes apagará a

candeia da vida quando se extinguir no ar a última badalada da meia-

noite, note-se que a referência à badalada é meramente simbólica, não

seja que a alguém lhe passe pela cabeça a ideia estúpida de encravar os

relógios dos campanários ou de retirar o badalo aos sinos pensando que

dessa maneira deteria o tempo e contrariaria o que é minha decisão

irrevogável, esta de devolver o supremo medo ao coração dos homens a

maior parte das pessoas que antes se encontravam no estúdio já se

havia sumido dali, e as que ainda se mantinham bichanavam baixinho

umas com as outras, os seus murmúrios zumbindo sem que o reali-

zador, ele próprio a deixar cair o queixo de puro pasmo, se lembrasse

de mandar calar com aquele gesto furioso que era seu costume usar em

circunstâncias obviamente muito menos dramáticas portanto resignem-

se e morram sem discutir porque de nada lhes adiantaria, porém, um

ponto há em que sinto ser minha obrigação dar a mão à palmatória, o

qual tem que ver com o injusto e cruel procedimento que vinha

seguindo, que era tirar a vida às pessoas à falsa-fé, sem aviso prévio,

sem dizer água-vai, tenho de reconhecer que se tratava de uma

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indecente brutalidade, quantas vezes não dei nem sequer tempo a que

fizessem testamento, é certo que na maior parte dos casos lhes mandava

uma doença para abrir caminho, mas as doenças têm algo de curioso, os

seres humanos sempre esperam safar-se delas, de modo que só quando

já é tarde de mais se vem a saber que aquela iria ser a última, enfim, a

partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um

prazo de uma semana para pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida,

fazer testamento e dizer adeus à família, pedindo perdão pelo mal feito

ou fazendo as pazes com o primo com quem desde há vinte anos estava

de relações cortadas, dito isto, senhor director-geral da televisão nacio-

nal, só me resta pedir-lhe que faça chegar hoje mesmo a todos os lares

do país esta minha mensagem autógrafa, que assino com o nome com

que geralmente se me conhece, morte. o director-geral levantou-se da

cadeira quando viu que já o tinham retirado do ecrã, dobrou a cópia da

carta e meteu-a num dos bolsos interiores do casaco. Notou que o

realizador vinha para ele, pálido, com o rosto descomposto, Então era

isso, dizia num murmúrio quase inaudível, então era isso. o director-

geral acenou em silêncio e dirigiu-se à saída. Não ouviu as palavras que

o locutor começara a balbuciar, Acabaram de escutar, e depois as

notícias que haviam deixado de ter importância porque em todo o país

ninguém lhes estava a dar a menor atenção, nas casas em que havia um

doente terminal as famílias foram juntar-se à cabeceira do infeliz,

porém, não podiam dizer-lhe que ia morrer daí a três horas, não

podiam dizer-lhe que já agora podia aproveitar o tempo para fazer o

testamento a que sempre se tinha negado ou se queria que chamassem o

primo para fazerem as pazes, também não podiam praticar a hipocrisia

do costume que era perguntar se se sentia melhorzinho, ficavam a

contemplar a pálida e emaciada face, depois olhavam o relógio às

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furtadelas, à espera de que o tempo passasse e de que o comboio do

mundo regressasse aos carris do costume para fazer a viagem de

sempre. E não poucas famílias houve que, tendo já pago à máphia para

que lhes levasse dali o triste despojo, e supondo, no melhor dos casos,

que não iriam agora pôr-se a chorar o dinheiro gasto, viam como, se

houvessem tido um pouco mais de caridade e paciência, lhes teria saído

grátis o despejo. Nas ruas havia enormes alvoroços, viam-se pessoas

paradas, aturdidas, ou desorientadas, sem saberem para que lado fugir,

outras a chorar desconsoladamente, outras abraçadas como se tivessem

resolvido começar ali mesmo as despedidas, algumas discutiam se as

culpas de tudo isto seriam do governo, ou da ciência médica, ou do

papa de roma, um céptico protestava que não havia memória de a