morte ter escrito alguma vez uma carta e que era necessário mandar
fazer com urgência a análise da caligrafia porque, dizia, uma mão só
composta de trocinhos ósseos nunca poderia escrever da mesma
maneira que o teria feito uma mão Completa, autêntica, viva, com
sangue, veias, nervos, tendões, pele e carne, e que se era certo que os
ossos não deixam impressões digitais no papel e portanto não se
poderia por aí identificar o autor da carta, um exame ao adn talvez
lançasse alguma luz sobre esta inesperada manifestação epistolar de um
ser, se a morte o é, que tinha estado silencioso toda a vida. Neste mesmo
momento o primeiro-ministro está a falar com o rei pelo telefone, a
explicar-lhe as razões por que havia decidido não lhe dar conhecimento
da carta da morte, e o rei responde que sim, que compreende perfeita-
mente, então o primeiro-ministro diz-lhe que sente muito o funesto
desenlace que a última badalada da meia-noite virá impor à periclitante
vida da rainha-mãe, e o rei encolhe os ombros, que para pouca vida
mais vale nenhuma, hoje ela, amanhã eu, tanto mais que o príncipe
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herdeiro já anda a dar mostras de impaciência, a perguntar quando
chegará a sua vez de ser rei constitucional.
Depois de terminada esta conversação íntima, com toques de inusual
sinceridade, o primeiro-ministro deu instruções ao chefe de gabinete
para convocar todos os membros do governo a uma reunião de urgên-
cia máxima, Quero-os aqui em três quartos de hora, às dez em ponto,
disse, teremos de discutir, aprovar e por em marcha os paliativos
necessários para minorar as confusões e balbúrdias de toda a espécie
que a nova situação inevitavelmente criará nos próximos dias, Refere-se
à quantidade de pessoas falecidas que vai ser preciso evacuar nesse
curtíssimo prazo, senhor primeiro-ministro, Isso ainda é o menos
importante, meu caro, para resolver problemas dessa natureza é que as
agências funerárias existem, aliás, a crise acabou para elas, devem estar
contentíssimas a deitar contas ao que vão ganhar, portanto, que
enterrem elas os mortos como lhes compete, que a nós caber-nos-á
tratar dos vivos, por exemplo, organizar equipas de psicólogos para
ajudarem as pessoas a superar o trauma de terem de voltar a morrer
quando estavam tão convencidas de que iriam viver para sempre,
Realmente deverá ser duro, eu próprio já o havia pensado, Não perca
tempo, os ministros que tragam os secretários de estado respectivos,
quero-os aqui a todos às dez em ponto, se algum lhe perguntar, diga
que é o primeiro a ser convocado, eles são como crianças pequenas,
gostam de rebuçados. o telefone tocou, era o ministro do interior,
senhor primeiro-ministro, estou a receber chamadas de todos os jornais,
disse, exigem que lhes sejam fornecidas cópias da carta que acaba de ser
lida na televisão em nome da morte e que eu deploravelmente desco-
nhecia, Não o deplore, se entendi assumir a responsabilidade de
guardar segredo foi para que não tivéssemos de aguentar doze horas de
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pânico e de confusão, Que faço, então, Não se preocupe com este
assunto, o meu gabinete vai distribuir a carta agora mesmo por todos os
órgãos de comunicação social, Muito bem, senhor primeiro-ministro, o
governo reunir-se-á às dez horas em ponto, traga os seus secretários de
estado, os subsecretários também, Não, esses deixe-os a guardar a casa,
sempre ouvi dizer que muita gente junta não se salva, sim, senhor
primeiro-ministro, seja pontual, a reunião principiará às dez horas e um
minuto, Tenha a certeza de que seremos os primeiros a chegar, senhor
primeiro-ministro, Receberá a sua medalha, Que medalha, Era só uma
maneira de falar, não faça caso.
Os representantes das empresas funerárias, enterros, incinerações e
trasladações, serviço permanente, vão reunir-se à mesma hora na sede
da corporação. Confrontadas com o desmesurado e nunca antes
experimentado desafio profissional que representará a morte simul-
tânea e o subsequente despacho fúnebre de milhares de pessoas em
todo o país, a única solução séria que se lhes apresentará, ademais de
altamente beneficiosa do ponto de vista económico graças ao embarate-
cimento racionalizado dos custos, será porem em campo, de forma
conjunta e ordenada, os recursos de pessoal e os meios tecnológicos de
que dispõem, em suma, a logística, estabelecendo de caminho quotas
proporcionais de participação no bolo, como graciosamente dirá o
presidente da associação de classe, com discreto embora sorridente
aplauso da companhia.
Haverá que levar em conta, por exemplo, que a produção de caixões,
tumbas, ataúdes, féretros e esquifes para uso humano se encontra
estancada desde o dia em que as pessoas deixaram de morrer e que, no
improvável caso de que ainda restem existências numa ou outra
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carpintaria de gerência conservadora, será como aquela pequena rosette
de malherbe, que, convertida em rosa, mais não pôde durar que a
brevidade de uma manhã. A citação literaria foi obra do presidente,
que, sem vir muito a propósito, mas provocando os aplausos da
assistência, disse a seguir, seja como for, terminou para nós a vergonha
de andar a fazer enterros a cães, gatos e canários de estimação, E papa-
gaios, disse uma voz lá ao fundo, E papagaios, assentiu o presidente, E
peixinhos tropicais, lembrou outra voz, Isso foi só depois da polémica
levantada pelo espírito que paira sobre a água do aquário, corrigiu o
secretário da mesa, a partir de agora vão passar a dá-los aos gatos, por
aquilo de lavoisier, quando disse que na natureza nada se cria e nada se
perde, tudo se transforma. se não se chegou a saber a que extremos
poderiam chegar os alardes de almanaque das agências funerárias ali
reunidas foi porque um dos seus representantes, preocupado com o
tempo, vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos no seu relógio,
levantou o braço para propor que se telefonasse à associação de
carpinteiros a perguntar como estavam eles de caixões e ataúdes,
Precisamos de saber com o que podemos contar a partir de amanhã,
concluiu. Como seria de esperar, a proposta foi calorosamente aplau-
dida, mas o presidente, disfarçando mal o despeito por não ter sido dele
a ideia, observou, o mais certo é não haver ninguém nos carpinteiros a
estas horas, Permito-me duvidar. senhor presidente, as mesma razões
que aqui nos reuniram, deverão tê-los feito reunir a eles. Acertava em
cheio o proponente. Da corporação de carpinteiros responderam que
tinham alertado os respectivos associados logo a seguir à leitura da
carta da morte, chamando a sua atenção para a conveniência de restabe-
lecerem no mais curto prazo possível o fabrico de caixaria fúnebre, e
que, de acordo com as informações que estavam a receber continua-
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mente, não só muitas empresas haviam logo convocado os seus operá-
rios, como também já se encontravam em plena laboração a maior parte
delas. Vai contra o horário de trabalho, disse o porta-voz da corporação,
mas, considerando que se trata de uma situação de emergência nacio-