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nal, os nossos advogados têm a certeza de que o governo não terá outro

remédio senão fechar os olhos e de que ainda por cima nos agradecerá,

o que não poderemos garantir, nesta primeira fase, é que os caixões e os

ataúdes a fornecer se apresentem com a mesma qualidade de acaba-

mento a que tínhamos habituado os nossos clientes, os polimentos, os

vernizes e os crucifixos no tampo terão de ficar para a fase seguinte,

quando a pressão dos enterros começar a diminuir, de todo o modo

estamos conscientes da responsabilidade de sermos uma peça

fundamental neste processo. ouviram-se novos e ainda mais calorosos

aplausos na reunião dos representantes das agências funerárias, agora

sim, agora havia motivo para se felicitarem mutuamente, nenhum

corpo ficaria por enterrar, nenhuma factura por cobrar. E os coveiros,

perguntou o da proposta, os coveiros fazem o que se lhes mandar,

respondeu irritado o presidente. Não era bem assim.

Por outra chamada telefónica soube-se que os coveiros exigiam um

aumento substancial de salário e o pagamento em triplo das horas

extraordinárias. Isso é com as câmaras municipais, eles que se

amanhem, disse o presidente. E se chegamos ao cemitério e não há lá

ninguém para abrir as covas, perguntou o secretário. A discussão

prosseguiu acesa. As vinte e três horas e cinquenta minutos o

presidente teve um infarto de miocárdio. Morreu com a última

badalada da meia-noite.

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Muito mais que uma hecatombe. Durante sete meses, que tantos

foram os que a trégua unilateral da morte havia durado, tinham-se ido

acumulando em uma nunca vista lista de espera mais de sessenta mil

moribundos, exactamente sessenta e dois mil quinhentos e oitenta,

postos de uma vez em paz por obra de um instante único, de um átimo

de tempo carregado de uma potência mortífera que só encontraria

comparação em certas repreensivas acções humanas. A propósito, não

resistiremos a recordar que a morte, por si mesma, sozinha, sem

qualquer ajuda externa, sempre matou muito menos que o homem.

Talvez algum espírito curioso se esteja perguntando agora como foi que

conseguimos apurar aquela precisa quantidade de sessenta e duas mil

quinhentas e oitenta pessoas que fecharam os olhos ao mesmo tempo e

para sempre. Foi muito fácil. sabendo-se que o país em que tudo isto se

passa tem mais ou menos dez milhões de habitantes e que a taxa de

mortalidade é mais ou menos de dez por mil, duas simples operações

aritméticas, das mais elementares, a multiplicação e a divisão, a par de

uma cuidadosa ponderação das proporções intermediárias mensais e

anuais, permitiram-nos obter, para cima e para baixo, uma estreita faixa

numérica na qual a quantidade finalmente indicada se nos apresentou

como média razoável, e se dizemos razoável é porque igualmente

poderíamos haver adoptado os números laterais de sessenta e duas mil

quinhentas e setenta e nove ou de sessenta e duas mil quinhentas e

oitenta e uma pessoas se a morte do presidente da corporação das

agências funerárias, por inesperada e de última hora, não tivesse vindo

introduzir nos nossos cálculos um factor de perturbação. Ainda assim,

estamos confiantes em que a verificação dos óbitos, iniciada logo às

primeiras horas da manhã seguinte, virá confirmar a justeza das contas

feitas. outro espírito curioso, dos que sempre interrompem o narrador,

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estará perguntando como podiam os médicos saber a que moradas se

deveriam dirigir para executar uma obrigação sem cujo cumprimento

um morto não estará legalmente morto, ainda que indiscutivelmente

morto esteja. Em certos casos, escusado seria dizê-lo, foram as próprias

famílias do defunto a chamar o seu médico assistente ou de cabeceira,

mas esse recurso teria forçosamente um alcance muito reduzido, uma

vez que o que se pretendia era oficializar em tempo recorde uma

situação anómala, de modo a evitar que se confirmasse uma vez mais o

ditado que diz que uma desgraça nunca vem só, o que, aplicado à

situação, significaria depois de morte súbita, putridez em casa. Foi

então quando se demonstrou que não é por acaso que um primeiro-

ministro chega a tão altas funções e que, como não se tem cansado de

afirmar a infalível sabedoria das nações, cada povo temo governo que

merece, devendo contudo observar-se, quanto a este particular, e para

completa clarificação do assunto, que se é verdade que os primeiros-

ministros, para bem ou para mal, não são todos iguais, também não é

menos verdade que os povos não são sempre a mesma cousa. Numa

palavra, em um caso como no outro, depende. ou é conforme, se se

preferir dizê-lo em duas palavras. Como se vai ver, qualquer obser-

vador, mesmo que não especialmente propenso à imparcialidade dos

juízos, não teria a menor dúvida em reconhecer que o governo soube

mostrar-se à altura da gravidade da situação.

Todos estaremos lembrados de que na alegria daqueles primeiros e

deliciosos dias de imortalidade, afinal tão breves, a que este povo

inocentemente se entregou, uma senhora, viúva de pouco tempo, teve a

ideia de celebrar essa felicidade nova pendurando na varanda florida

da sua casa de jantar, aquela que dava para a rua, a bandeira nacional.

Também estaremos recordados de como o embandeiramento, em

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menos de quarenta e oito horas, qual rastilho de pólvora, qual nova

epidemia, alastrou a todo o país. Passados estes sete meses de contínuas

e mal-sofridas desilusões, só raras bandeiras haviam sobrevivido, e,

mesmo essas, reduzidas a melancólicos farrapos, com as cores comidas

pelo sol e deslavadas pela chuva, além de lamentavelmente desman-

chada a arquitectura do emblema. Dando prova de um admirável

espírito previsor, o governo, entre outras medidas de urgência desti-

nadas a suavizar os danos colaterais do inopinado regresso da morte,

tinha recuperado a bandeira da pátria como indicativo de que ali,

naquele terceiro andar esquerdo, havia um morto à espera. Assim

industriadas, as famílias que tinham sido feridas pela odiosa parca

mandaram um dos seus à loja a comprar o símbolo, penduraram-no à

janela e, enquanto enxotavam as moscas da cara do falecido, puseram-

se a aguardar o médico que viria certificar o óbito. Reconheça-se que a

ideia não só era eficaz, como da mais extremada elegância. Os médicos

de cada cidade, vila, aldeia ou simples lugar, de carro, de bicicleta ou a

pé, só tinham de percorrer as ruas de olho atento à bandeira, subir à

casa assinalada e, tendo comprovado a defunção à vista desarmada,

sem a ajuda de instrumentos, porquanto outros exames mais chegados

ao corpo se haviam tornado impossíveis por causa da urgência, deixa-

vam um papel assinado com o qual se tranquilizariam as agências

funerárias sobre a natureza específica da matéria-prima, isto é, que se a

esta enlutada casa tinham vindo por lebre, não seria gato o que leva-

riam dela. Como já se terá percebido, a bem lembrada utilização da

bandeira nacional iria ter uma dupla finalidade e uma dupla vantagem.

Havendo começado por servir de guia aos médicos, iria ser agora farol