análise a outro jornal, dividimos o mal pelas aldeias e a partir daqui seja
o que deus quiser, tudo menos ter de sofrer outro susto igual ao que
apanhei. o grafólogo foi a um jornal, foi a outro, e a outro, e só à quarta
vez, a ponto já de perder as esperanças, conseguiu que lhe recebessem o
fruto das não poucas horas do labiríntico trabalho a que, com lupa
diurna e nocturna, se havia dedicado. O substancioso e suculento
relatório começava por recordar que a interpretação da escrita, nas suas
origens, havia sido um dos ramos da fisiognomia, sendo os outros, para
informação de quem não esteja a par desta ciência exacta, a mímica, os
gestos, a pantomima e a fonognomonia, feito o que passou a chamar à
colação as maiores autoridades na complexa matéria, como foram, cada
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um em seu tempo e lugar, camillo baldi, johann caspar lavater, édouard
auguste patrice hocquart, adolf henze, jean-hippolyte michon, william
thierry preyer, cesare lombroso, jules crépieux-jamin, rudolf pophal,
ludwig klages, wilhelm helmuth müller, alice enskat, robert heiss,
graças aos quais a grafologia havia sido reestruturada no seu aspecto
psicológico, demonstrando-se a ambivalência das particularidades
grafológicas e a necessidade de conceber a sua expressão como um
conjunto, posto o que, uma vez expostos os dados históricos e essenciais
da questão, o nosso grafólogo avançou pelo campo da definição
exaustiva das características principais da escrita sub judice, a saber, o
tamanho, a pressão, o arranjo, a disposição no espaço, os ângulos, a
pontuação, a proporção de traços altos e baixos das letras, ou, por
outras palavras, a intensidade, a forma, a inclinação, a direcção e a
continuação dos signos gráficos, e, finalmente, havendo deixado claro o
facto de que o objectivo do seu estudo não era um diagnóstico clínico,
nem uma análise do carácter, nem um exame de aptidão profissional, o
especialista concentrou a sua atenção nas evidentes mostras relacio-
nadas com o foro criminológico que a escrita a cada passo ia revelando,
Não obstante, escrevia frustrado e pesaroso, encontro-me colocado
perante uma contradição que não vejo forma nenhuma de solucionar,
que duvido mesmo que haja para ela resolução possível, e é que se é
certo que todos os vectores da metódica e minuciosa análise grafológica
a que procedi apontam a que a autora do escrito é aquilo a que se
chama uma serial killer, uma assassina em série, outra verdade igual-
mente irrefragável, igualmente resultante do meu exame e que de
algum modo vem desbaratar a tese anterior, acabou por se me impor,
isto é, a verdade de que a pessoa que escreveu esta carta está morta.
Assim era, de facto, e a própria morte não teve mais remédio que
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confirmá-lo, Tem razão, o senhor grafólogo, foram as suas palavras
depois de ler a erudita demonstração. só não se compreendia como,
estando ela morta, e toda feita ossos, fosse capaz de matar. E, sobretudo,
que escrevesse cartas. Estes mistérios nunca serão esclarecidos.
Ocupados a explicar o que depois da hora fatídica havia sucedido às
sessenta e duas mil quinhentas e oitenta pessoas que se encontravam
em estado de vida suspensa, adiámos para um momento mais opor-
tuno, que veio a ser este, as indispensáveis reflexões sobre a maneira
como reagiram à mudança de situação os lares do feliz ocaso, os hospi-
tais, as companhias de seguros, a máphia e a igreja, especialmente a
católica, maioritária no país, ao ponto de nele ser crença comum que o
senhor jesus cristo não quereria outro lugar para nascer se tivesse de
repetir, de a até z, a sua primeira e até agora, que se saiba, única
existência terreal. Nos lares do feliz ocaso, começando por eles, os
sentimentos foram o que se esperaria. se se levar em conta que a inin-
terrupta rotação dos internados, como ficou claramente explicado logo
no princípio destes surpreendentes sucessos, era a própria condição da
prosperidade económica das empresas, o regresso da morte teria de ser,
como foi, motivo de alegria e renovadas esperanças para as respectivas
administrações. Passado o choque inicial causado pela leitura da famosa
carta na televisão, os gerentes começaram imediatamente a deitar
contas à vida e viram que todas lhes saíam certas. Não poucas garrafas
de champanhe foram bebidas à meia-noite para festejar o já não
esperado regresso à normalidade, o que, parecendo constituir o cúmulo
da indiferença e do desprezo pela vida alheia, não era, afinal, senão o
natural alívio, o legítimo desafogo de quem, posto perante uma porta
fechada e tendo perdido a chave, a via agora aberta de par em par,
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escancarada, com o sol do outro lado. Dirão os escrupulosos que ao
menos se deveria ter evitado a ostentação ruidosa e pacóvia do cham-
panhe, o saltar da rolha, a espuma a escorrer, e que um discreto cálice
deporto ou madeira, uma gota de conhaque, um cheirinho de brande no
café, seriam festejo mais que suficiente, mas nós, aqui, que bem
sabemos com que facilidade o espírito deixa escapar as rédeas do corpo
quando a alegria se desmanda, ainda quando não se deva desculpar,
perdoar sempre se pode. Na manhã seguinte, os responsáveis pela
gerência chamaram as famílias para que fossem buscar os corpos,
mandaram arejar os quartos e mudar os lençóis, e após terem reunido o
pessoal para lhes comunicar que, afinal, a vida continuava, sentaram-se
a examinar a lista de pedidos de ingresso e a escolher, entre os preten-
dentes, aqueles que mais prometedores lhes parecessem. Por razões não
em todos os aspectos idênticas, mas de igual consideração, também a
disposição anímica dos administradores hospitalares e da classe médica
havia melhorado da noite para o dia. Embora, como já havia ficado dito
antes, uma grande parte dos doentes sem cura e cuja enfermidade havia
chegado ao seu extremo e derradeiro grau, se era lícito dizer tal de um
estado nosológico que se havia anunciado como eterno, tivessem sido
recambiados para as suas casas e famílias, Em que melhores mãos
poderiam estar os pobres diabos, perguntava-se hipocritamente, o certo
é que um elevado número deles, sem parentes conhecidos nem dinheiro
para pagar a pensão exigida nos lares do feliz ocaso, se amontoavam
por ali ao sabor do que calhasse, não já nos corredores, como é costume
velho destes beneméritos estabelecimentos de assistência, ontem, hoje e
sempre, mas em arrecadações e em recantos, em esconsos e em desvãos,
onde com frequência os deixavam abandonados por vários dias, sem
que isso importasse a quem quer que fosse, pois, como diziam médicos
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e enfermeiros, por muito mal que se encontrassem, morrer não
poderiam. Agora já estavam mortos, levados dali e enterrados, o ar dos
hospitais tornara-se puro e cristalino, com aquele seu inconfundível
aroma de éter, tintura de iodo e creolina, como nas altas montanhas, a
céu aberto. Não se abriram garrafas de champanhe, mas os sorrisos
felizes dos administradores e directores clínicos eram um alívio para as
almas, e, no que aos médicos se refere, não há mais que dizer senão que