haviam recuperado o histórico olhar devorador com que seguiam o
pessoal feminino de enfermagem. Portanto, em todos os sentidos da
palavra, a normalidade.
Quanto às empresas seguradoras, terceiras da lista, não há até este
momento muito para informar, porquanto ainda não acabaram de
entender-se sobre se a actual situação, à luz das alterações introduzidas
nas apólices de seguro de vida e a que antes fizemos referência porme-
norizada, as prejudicaria ou beneficiaria. Não darão um passo sem
estarem bem seguras da firmeza do chão que pisam, mas, quando
finalmente o derem, ali mesmo implantarão novas raízes sob a forma de
contrato que consigam inventar mais adequada aos seus interesses,
Entretanto, como o futuro a deus pertence e porque não se sabe o que o
dia de amanhã nos virá trazer, continuarão a considerar como mortos
todos os segurados que atingirem a idade de oitenta anos, este pássaro,
pelo menos, já o têm bem seguro na mão, só falta ver se amanhã arran-
jarão maneira de fazer cair dois na rede. Há quem adiante, no entanto,
que, aproveitando a confusão que reina na sociedade, agora mais do
que nunca entre a espada e a parede, entre sila e caribdes, entre a cruz e
a caldeirinha, talvez não fosse má ideia aumentar para oitenta e cinco
ou mesmo noventa anos a idade da morte actuarial. o raciocínio dos que
defendem a alteração é transparente e claro como água, dizem que,
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chegando àquelas idades, as pessoas, em geral, além de não terem já
parentes para lhes acudirem numa necessidade, ou terem-nos tão
velhos eles próprios que tanto faz, sofrem sérios rebaixamentos no valor
das suas pensões de reforma por efeito da inflação e dos crescentes
aumentos do custo de vida, causa de que muitíssimas vezes se vejam
forçadas a interromper o pagamento dos seus prémios de seguro,
dando às companhias o melhor dos motivos para considerarem nulo e
sem efeito o respectivo contrato. É uma desumanidade, objectam
alguns. Negócios são negócios, respondem outros.
Veremos no que isto vai dar.
Onde também a estas horas se está a falar muito de negócios é na
máphia. Talvez que por ter sido excessivamente minuciosa, admitimo-
lo sem reserva, a descrição feita nestas páginas dos negros túneis por
onde a organização criminosa penetrou na exploração funerária poderá
ter levado algum leitor a pensar que mísera máphia era esta se não
tinha outras maneiras de ganhar dinheiro com muito menor esforço e
mais pingues proventos. Tinha-as, e variadas, como qualquer das suas
congéneres espalhadas pelas sete partidas do mundo, porém,
habilíssima em equilíbrios e mútuas potenciações das tácticas e das
estratégias, a máphia local não se limitava a apostar prosaicamente no
lucro imediato, os seus objectivos eram muito mais vastos, visavam
nada menos que a eternidade, ou seja, implantar, com a derivação tácita
das famílias para a bondade da eutanásia e com as bênçãos do poder
político, que fingiria olhar para outro lado, o monopólio absoluto das
mortes e dos enterramentos dos seres humanos, assumindo no mesmo
passo a responsabilidade de manter a demografia nos níveis em cada
momento mais convenientes para o país, abrindo ou fechando a
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torneira, conforme a imagem já antes usada, ou, para empregar uma
expressão com mais rigor técnico, controlando o fluxómetro. se não
poderia, ao menos nesta primeira fase, espevitar ou ralear a procriação,
ao menos estaria na sua mão acelerar ou retardar as viagens à fronteira,
não a geográfica, mas a de sempre. No preciso ponto em que entrámos
na sala, o debate havia-se centrado na melhor maneira de reaplicar em
actividades similarmente remunerativas a força de trabalho que tinha
ficado sem ocupação com o regresso da morte, e, sendo certo que as
sugestões não faltaram à roda da mesa, mais radicais umas que outras,
acabou por preferir-se algo já com largo historial de provas dadas e que
não necessitava dispositivos complicados, isto é, a protecção. Logo no
dia seguinte, de norte a sul, por todo o país, as agências funerárias
viram entrar-lhes pela porta dentro quase sempre dois homens, às vezes
um homem e uma mulher, raramente duas mulheres, que perguntavam
educadamente pelo gerente, ao qual, depois, com os melhores modos,
explicavam que o seu estabelecimento corria o risco de ser assaltado e
mesmo destruído, ou à bomba, ou incendiado, por activistas de umas
quantas associações ilegais de cidadãos que exigiam a inclusão do
direito à eternidade na declaração universal dos direitos humanos e
que, agora frustrados, pretendiam desafogar a sua ira fazendo cair
sobre inocentes empresas o pesado braço da vingança, só porque eram
elas que levavam os cadáveres à última morada. Estamos informados,
dizia um dos emissários, de que as acções destrutivas concertadas, que
poderão ir, em caso de resistência, até ao assassínio do proprietário e do
gerente e suas famílias, e na falta deles um ou dois empregados, come-
çarão amanhã mesmo, talvez neste bairro, talvez noutro, E que posso eu
fazer, perguntava tremendo o pobre homem, Nada, o senhor não pode
fazer nada, mas nós poderemos defendê-lo se no-lo pedir, Claro que
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sim, claro que peço, por favor, Há condições a satisfazer, Quaisquer que
sejam, por favor, protejam-me, A primeira é que não falará deste
assunto a ninguém, nem sequer à sua mulher, Não sou casado, Tanto
faz, à sua mãe, à sua avó, à sua tia, A minha boca não se abrirá, Melhor
assim, ou então arriscar-se-á a ficar com ela fechada para sempre, E as
outras condições, uma só, pagar o que lhe dissermos, Pagar, Teremos de
montar os operativos de protecção, e isso, caro senhor, custa dinheiro,
Compreendo, Até poderíamos defender a humanidade inteira se ela
estivesse disposta a pagar o preço, no entanto, uma vez que atrás de
tempo sempre outro tempo virá, ainda não perdemos a esperança,
Estou a perceber, Ainda bem que é de percepção rápida, Quanto
deverei pagar, Está apontado nesse papel, Tanto, E o justo, E isto é por
ano, ou por mês, Por semana, É demasiado para as minhas posses, com
o negócio funerário não se enriquece facilmente, Tem sorte em não lhe
pedirmos aquilo que, em sua opinião, a sua vida deverá valer, É
natural, não tenho outra, E não a terá, por isso o conselho que lhe
damos é que trate de acautelar esta, Vou pensar, precisarei de falar com
os meus sócios, Tem vinte e quatro horas, nem mais um minuto, a partir
daí lavamos as nossas mãos do assunto, a responsabilidade passa a ser
toda sua, se algum acidente vier a suceder-lhe, temos quase a certeza de
que, por ser o primeiro, não será mortal, nessa altura talvez voltemos a
conversar consigo, mas o preço dobrará, e então não terá outra solução
que pagar o que lhe pedirmos, não imagina como são implacáveis essas
associações de cidadãos que reivindicam a eternidade, Muito bem,
pago, Quatro semanas adiantadas, por favor, Quatro semanas, o seu
caso é dos urgentes, e, como já lhe tínhamos dito antes, custa dinheiro
montar os operativos de protecção, Em numerário, em cheque, Nume-
rário, cheques só para transacções doutro tipo e doutros montantes,