teria de responder melancolicamentte, É, sim, é importante, muito
obrigado pelo seu cuidado. Mas isto só poderia ter acontecido ao
princípio, quando ainda poucos sabiam que a morte estava a utilizar o
serviço postal público para mensageiro das suas fúnebres notificações.
Em poucos dias a cor violeta iria tornar-se na mais execrada de todas
as cores, mais ainda que o negro apesar de este significar luto, o que é
facilmente compreensível se pensarmos que o luto o põem os vivos, e
não os mortos, mesmo quando a estes os enterram com o fato preto
posto. Imagine-se a perturbação, o desconcerto, a perplexidade daquele
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que ia para o seu trabalho e viu de repente saltar-lhe ao caminho a
morte na figura de um carteiro que nunca tocará duas vezes, a este
bastar-lhe-á, se o acaso não o fez encontrar o destinatário na rua, meter
a carta na caixa do inquilino em questão ou introduzi-la, deslizando,
por baixo da porta. O homem está ali parado, no meio do passeio, com a
sua estupenda saúde, a sua sólida cabeça, tão sólida que nem mesmo
agora lhe dói apesar do terrível choque, de repente o mundo deixou de
lhe pertencer ou ele de pertencer ao mundo, passaram a estar empres-
tados um ao outro por oito dias, não mais que oito dias, di-lo esta carta
de cor violeta que resignadamente acaba de abrir, os olhos nublados de
lágrimas mal conseguem decifrar o que nela está escrito, Caro senhor,
lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e
improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo
que lhe resta, sua atenta servidora, morte. A assinatura vem com inicial
minúscula, o que, como sabemos, representa, de alguma forma, o seu
certificado de origem. Duvida o homem, senhor fulano lhe chamou o
carteiro, portanto é do sexo masculino, e logo o confirmámos nós
próprios, duvida o homem se deverá voltar para casa e desabafar com a
família a irremediável pena, ou se, pelo contrário, terá de engolir as
lágrimas e prosseguir o seu caminho, ir aonde o trabalho o espera.
cumprir todos os dias que lhe restam, então poderá perguntar Morte
onde esteve a tua vitória, sabendo no entanto que não receberá resposta,
porque a morte nunca responde. e não é porque não queira, é só porque
não sabe o que há-de dizer diante da maior dor humana.
Este episódio de rua, unicamente possível num país pequeno onde
toda a gente se conhece, é por de mais eloquente quanto aos
inconvenientes do sistema de comunicação instituído pela morte para a
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rescisão do contrato temporário a que chamamos vida ou existência.
Poderia tratar-se de uma sádica manifestação de crueldade, como tantas
que vemos todos os dias, mas a morte não tem qualquer necessidade de
ser cruel, a ela, tirar a vida às pessoas basta-lhe e sobeja-lhe. Não
pensou, é o que é. E agora, absorvida como deverá estar na reorgani-
zação dos seus serviços de apoio depois da longa paragem de sete
meses, não tem olhos nem ouvidos para os clamores de desespero e
angústia dos homens e das mulheres que, um a um, vão sendo avisados
da sua morte próxima, desespero e angústia que, em alguns casos, estão
a causar efeitos precisamente contrários àqueles que tinham sido
previstos, isto é, as pessoas condenadas a desaparecer não resolvem os
seus assuntos, não fazem testamento, não pagam os impostos em
dívida, e, quanto às despedidas da família e dos amigos mais chegados,
deixam-nas para o último minuto, o que, como é evidente, não vai dar
nem para o mais melancólico dos adeuses. Mal informados sobre a
natureza profunda da morte, cujo outro nome é fatalidade, os jornais
têm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de
impiedosa. cruel. tirana, malvada, sanguinária, vampira, imperatriz do
mal, drácula de saias, inimiga do género humano, desleal, assassina,
traidora, serial killer outra vez, e houve até um sem anário, dos
humorísticos, que, espremendo o mais que pôde o espírito sarcástico
dos seus criativos, conseguiu chamar-lhe filha-da-puta. Felizmente, o
bom senso ainda perdura em algumas redacções. um dos jornais mais
respeitáveis do reino, decano da imprensa nacional, publicou um sisudo
editorial em que apelava a um diálogo aberto e sincero com a morte,
sem reservas mentais, de coração nas mãos e espírito fraterno, no caso,
como era óbvio, de se conseguir descobrir onde ela se alojava, o seu
fojo, o seu covil, o seu quartel-general. um outro jornal sugeriu às
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autoridades policiais que investigassem nas papelarias e fabricas de
papel, porquanto os consumidores humanos de sobrescritos de cor
violeta, se os houvera, e pouquíssimos seriam, deveriam de ter mudado
de gosto epistolar à vista dos acontecimentos recentes, sendo portanto
facílimo caçar a macabra cliente quando ela se apresentasse a renovar a
provisão. outro jornal, rival acérrimo deste último, apressou-se a classi-
ficar a ideia de estupidez crassa, porquanto só a um idiota chapado
poderia ocorrer a lembrança de que a morte, um esqueleto embrulhado
num lençol como toda a gente sabe, saísse por seu pé, chocalhando os
calcâneos nas pedras da calçada, para ir lançar as cartas ao correio. Não
querendo ficar atrás da imprensa, a televisão aconselhou o ministério
do interior a pôr agentes de guarda aos receptáculos ou marcos postais,
esquecida, pelos vistos, de que a primeira carta, aquela que lhe havia
sido dirigida, tinha aparecido no gabinete do director-geral estando a
porta fechada com duas voltas à chave e as janelas com as vidraças
intactas. Tal como o chão, as paredes e o tecto não apresentavam nem
sequer uma simples fenda onde uma lâmina de barbear pudesse caber.
Talvez fosse realmente possível convencer a morte a tratar com mais
compaixão os infelizes condenados, mas para isso era preciso começar
por encontrá-la e ninguém sabia como nem onde.
Foi então que a um médico legista, pessoa bem informada sobre tudo
quanto, de maneira directa ou indirecta, dissesse respeito à sua
profissão, lhe ocorreu a ideia de mandar vir do estrangeiro um famoso
especialista em reconstituição de rostos a partir de caveiras, o qual dito
especialista, partindo de representações da morte em pinturas e
gravuras antigas, sobretudo aquelas que mostram o crânio descoberto,
trataria de restituir a carne aonde fazia falta, reencaixaria os olhos nas
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órbitas, distribuiria em adequadas proporções cabelo, pestanas e
sobrancelhas, espalharia nas faces os coloridos próprios, até que diante
de si surgisse uma cabeça perfeita e acabada de que se fariam mil cópias
fotográficas que outros tantos investigadores levariam na carteira para
as compararem com quantas caras de mulher lhes aparecessem pela
frente. o mal foi que, concluída a intervenção do especialista
estrangeiro, só uma vista pouco treinada admitiria como iguais as três
caveiras escolhidas, obrigando portanto a que os investigadores, em
lugar de uma fotografia, tivessem de trabalhar com três, o que, obvia-
mente, iria dificultar a tarefa da caça-à-morte como, ambiciosamente, a
operação havia sido denominada. uma única cousa havia ficado
demonstrada por cima de qualquer dúvida, a saber, que nem a