iconografia mais rudimentar, nem a nomenclatura mais enredada, nem
a simbólica mais abstrusa se haviam equivocado. A morte, em todos os
seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma
mulher. A esta mesma conclusão, como decerto estareis lembrados, já o
eminente grafólogo que estudou o primeiro manuscrito da morte havia
chegado quando se referiu a uma autora e não a um autor, mas isso
talvez tenha sido consequência do simples hábito, dado que, à excepção
de alguns idiomas, poucos, em que, não se sabe porquê, se preferiu
optar pelo género masculino, ou neutro, a morte sempre foi uma pessoa
do sexo feminino. Embora esta informação já tenha sido dada antes,
convirá, para que não esqueça, insistir no facto de que os três rostos,
sendo todos de mulher, e de mulher jovem, eram diferentes uns dos
outros em determinados pontos, não obstante, também, as flagrantes
semelhanças que neles unanimemente se reconheciam. Porque, não
sendo crível a existência de três mortes distintas, por exemplo, a
trabalhar por turnos, duas delas teriam de ser necessariamente excluí-
125
das, embora também pudesse acontecer, para complicar mais ainda a
situação, que o modelo esquelético da verdadeira e real morte viesse a
não corresponder a nenhum dos três que haviam sido seleccionados. De
acordo com a frase feita, iria ser o mesmo que disparar um tiro na
escuridão e confiar que o benévolo acaso tivesse tempo de colocar o
alvo na trajectória da bala.
Iniciou-se a investigação, como doutra maneira não poderia ser, nos
arquivos do serviço oficial de identificação onde se reuniam, classifi-
cadas e ordenadas por características básicas, doucocéfalos de um lado,
braquicéfalos do outro, as fotografias de todos os habitantes do país,
tanto naturais como forâneos. Os resultados foram decepcionantes.
Claro está que, em princípio, havendo os modelos escolhidos para a
reconstituição facial, tal como antes referimos, sido tomados de
gravuras e pinturas antigas, não se esperaria encontrar a imagem
humanada da morte em sistemas de identificação modernos, só há
pouco mais de um século instituídos, mas, por outro lado, considerando
que a mesma morte existe desde sempre e não se vislumbra nenhum
motivo para que precisasse de mudar de cara ao longo dos tempos, sem
esquecer que deveria ser-lhe difícil realizar o seu trabalho de modo
cabal e ao abrigo de suspeitas se vivesse na clandestinidade, é perfeita-
mente lógico admitir a hipótese de que ela se tivesse inscrito no registo
civil sob um nome falso, uma vez que, como temos mais do que
obrigação de saber, à morte nada é impossível. Fosse como fosse, o certo
é que, apesar de os investigadores terem recorrido aos talentos das artes
da informática no cruzamento de dados, nenhuma fotografia de uma
mulher concretamente identificada coincidiu com qualquer das três
imagens virtuais da morte. Não houve portanto outro remédio, aliás
126
como já havia sido previsto em caso de necessidade, que regressar aos
métodos da investigação clássica, ao artesanato policial de cortar e
coser, espalhando por todo o país aqueles mil agentes de autoridade
que, de casa em casa, de loja em loja, de escritório em escritório, de
fábrica em fábrica, de restaurante em restaurante, de bar em bar, e até
mesmo em lugares reservados ao exercício oneroso do sexo, passariam
revista a todas as mulheres com exclusão das adolescentes e das de
idade madura ou provecta, pois as três fotografias que levavam no
bolso não deixavam dúvidas de que a morte, se chegasse a ser
encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de idade e
formosa como poucas. De acordo com o padrão obtido, qualquer delas
poderia ser a morte, porém, nenhuma o era em realidade. Depois de
ingentes esforços, depois de calcorrearem léguas e léguas por ruas,
estradas e caminhos, depois de subirem escadas que todas juntas os
levariam ao céu, os agentes lograram identificar duas dessas mulheres,
as quais só diferiam dos retratos existentes nos arquivos porque haviam
beneficiado de intervenções de cirurgia estética que, por uma assom-
brosa coincidência, por uma estranha casualidade, haviam acentuado as
semelhanças dos seus rostos com os rostos dos modelos reconstituídos.
No entanto, um exame minucioso das respectivas biografias eliminou,
sem margem de erro, qualquer possibilidade de que algum dia elas se
tivessem dedicado, nem que fosse nas horas vagas, às mortíferas activi-
dades da parca, quer profissionalmente, quer como simples amadoras.
Quanto à terceira mulher, só identificada graças ao álbum de fotografias
da família, essa, tinha falecido no ano passado. Por simples exclusão de
partes, não poderia ser a morte quem dela precisamente havia sido
vítima. E escusado será dizer que enquanto as investigações decorre-
ram, e duraram elas algumas semanas, os sobrescritos de cor violeta
127
continuaram a chegar a casa dos seus destinatários. Era evidente que a
morte não arredara pé do seu compromisso com a humanidade.
Naturalmente haveria que perguntar se o governo se estava limi-
tando a assistir impávido ao drama quotidiano vivido pelos dez
milhões de habitantes do país. A resposta é dupla, afirmativa por um
lado, negativa por outro. Afirmativa, ainda que só em termos bastante
relativos, porque morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e
corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança
de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal fariam os
governos de todo o mundo à precária tranquilidade pública se
passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que morre
um mísero velho no asilo de indigentes. E é negativa porque não seria
possível, até mesmo a um coração de pedra, permanecer indiferente à
demonstração palpável de que a semana de espera estabelecida pela
morte havia tomado proporções de verdadeira calamidade colectiva,
não só para a média de trezentas pessoas a cuja porta a sorte mofina ia
bater diariamente, mas também para a restante gente, nada mais nada
menos que nove milhões novecentas e noventa e nove mil e setecentas
pessoas de todas as idades, fortunas e condições que viam todas as
manhãs, ao acordar de uma noite atormentada pelos mais terríveis
pesadelos, a espada de dâmocles suspensa por um fio sobre as suas
cabeças. Quanto aos trezentos habitantes que haviam recebido a fatídica
carta de cor violeta, as maneiras de reagir à implacável sentença
variavam, como é natural, segundo o carácter de cada um. Além
daquelas pessoas, já mencionadas antes, que, impelidas por uma ideia
distorcida de vingança a que com justa razão se poderia aplicar o
neologismo de pré-póstuma, decidiram faltar ao cumprimento dos seus
128
deveres cívicos e familiares, não fazendo testamento nem pagando os
impostos em dívida, houve muitas que, pondo em prática uma inter-
pretação mais do que viciosa do carpe diem horaciano, malbarataram o
pouco tempo de vida que ainda lhes ficava entregando-se a repreen-
síveis orgias de sexo, droga e álcool, talvez pensando que, incorrendo