em tão desmedidos excessos, poderiam atrair sobre as suas cabeças um
colapso fulminante ou, na sua falta, um raio divino que, matando-as ali
mesmo, as furtasse às garras da morte propriamente dita, pregando-lhe
assim uma partida que talvez lhe servisse de emenda. outras pessoas,
estóicas, dignas, corajosas, optavam pela radicalidade absoluta do
suicídio, crendo também que dessa maneira estariam a dar uma lição de
civilidade ao poder de tânatos, aquilo a que antigamente chamávamos
uma bofetada sem mão, daquelas que, de acordo com as honestas
convicções da época, mais dolorosas seriam por terem a sua origem no
foro ético e moral e não em qualquer movimento de primário desforço
físico. Escusado seria dizer que todas estas tentativas se malograram, à
excepção de algumas pessoas obstinadas que reservaram o seu suicídio
para o último dia do prazo. uma jogada de mestre, esta, sim, para a qual
a morte não encontrou resposta.
Honra lhe seja feita, a primeira instituição a ter uma percepção muito
clara da gravidade da situação anímica do povo em geral foi a igreja
católica, apostólica e romana, à qual, uma vez que vivemos num tempo
dominado pela hipertrofiada utilização de siglas na comunicação
quotidiana, tanto privada como pública, não assentaria mal a abrevia-
tura simplificadora de icar. Também é certo que seria preciso estar cega
de todo para não ver como, quase de um momento para outro, se lhe
tinham enchido os templos de gente aflita que ia à procura de uma
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palavra de esperança, de um consolo, de um bálsamo, de um analgé-
sico, de um tranquilizante espiritual. Pessoas que até aí tinham vivido
conscientes de que a morte é certa e de que a ela não há meio de
escapar, mas pensando ao mesmo tempo que, havendo tanta gente para
morrer, só por um grande azar lhes tocaria a vez, passavam agora o
tempo a espreitar por trás da cortina da janela a ver se vinha o carteiro
ou tremendo de ter de voltar a casa, onde a temível carta de cor violeta,
pior que um sanguinário monstro de fauces escancaradas, poderia estar
atrás da porta para lhes saltar em cima. Nas igrejas não se parava um
momento, as extensas filas de pecadores contritos, constantemente
refrescadas como se fossem linhas de montagem, davam duas voltas à
nave central. os confessores de serviço não baixávamos braços, às vezes
distraídos pela fadiga, outras vezes com a atenção de súbito espevitada
por um pormenor escandaloso do relato, no fim aplicavam uma peni-
tência pro forma, tantos pai-nossos, tantas ave-marias, e despachavam
uma apressada absolvição. No breve intervalo entre o confessado que se
retirava e o confitente que se ajoelhava, davam uma dentada no
sanduíche de frango que seria todo o seu almoço, enquanto vagamente
imaginavam compensações para o jantar. os sermões versavam
invariavelmente sobre o tema da morte como porta única para o paraíso
celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os
pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos
os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa
catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de
contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres,
uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para
prepararem as almas com vista à ascensão ao éden.
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Alguns padres houve, porém, que, encerrados na malcheirosa
penumbra do confessionário, tiveram que fazer das tripas coração, sabe
deus com que custo, porque também eles, nessa manhã, haviam
recebido o sobrescrito de cor violeta e por isso tinham sobra de razões
para duvidarem das virtudes lenitivas do que naquele momento
estavam a dizer.
O mesmo se passava com os terapeutas da mente que o ministério da
saúde, correndo a imitar as providências terapêuticas da igreja, tinha
enviado para auxilio dos mais desesperados. E que não foram poucas as
vezes que um psicólogo, no preciso momento em que aconselhava o
paciente a deixar sair as lágrimas como sendo a melhor maneira de
aliviar a dor que o atormentava, se desfazia em convulsivo choro ao
lembrar-se de que também ele poderia ser o destinatário de um sobres-
crito idêntico na primeira distribuição postal de amanhã. Acabavam os
dois a sessão em desabalado pranto, abraçados pela mesma desgraça,
mas pensando o terapeuta da mente que se lhe viesse a suceder uma
infelicidade, ainda teria oito dias, cento e noventa e duas horas para
viver. umas orgiazinhas de sexo, droga e álcool, como tinha ouvido
dizer que se organizavam, ajudá-lo-iam a passar para o outro mundo,
embora correndo o risco de que, lá no assento etéreo onde subiste, se te
venham a agravar as saudades deste.
Diz-se, di-lo a sabedoria das nações, que não há regra sem excepção,
e realmente assim deverá ser, porquanto até mesmo no caso de regras
que todos consideraríamos maximamente inexpugnáveis como são, por
exemplo, as da morte soberana, em que, por simples definição do con-
ceito, seria inadmissível que se pudesse apresentar qualquer absurda
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excepção, aconteceu que uma carta de cor violeta foi devolvida à proce-
dência. objectar-se-á que semelhante cousa não é possível, que a morte,
precisamente por estar em toda a parte, não pode estar em nenhuma em
particular, daqui decorrendo, portanto, neste caso, a impossibilidade,
tanto material como metafísica, de situar e definir o que costumamos
entender por procedência, ou seja, na acepção que aqui nos interessa, o
lugar de onde veio. Igualmente se objectará, embora com menos
pretensão especulativa, que, tendo mil agentes da polícia procurado a
morte durante semanas, passando o país inteiro, casa por casa, a pente
fino, como se de um piolho esquivo e hábil nas fintas se tratasse, e não a
tendo visto nem cheirado, é óbvio que se até ao momento em que
estamos não nos foi dada nenhuma explicação de como as cartas da
morte vão para o correio, menos ainda se nos dirá por que misteriosos
canais agora lhe chegou às mãos a carta devolvida.
Reconhecemos humildemente que têm faltado explicações, estas e
decerto muitas mais, confessamos que não estamos em condições de as
dar a contento de quem no-las requer, salvo se, abusando da creduli-
dade do leitor e saltando por cima do respeito que se deve à lógica dos
sucessos, juntássemos novas irrealidades à congénita irrealidade da
fábula, compreendemos sem custo que tais faltas prejudicam seriamente
a sua credibilidade, porém, nada disto significa, repetimos, nada disto
significa que a carta de cor violeta a que nos referimos não tenha sido
efectivamente devolvida ao remetente. Factos são factos, e este, quer se
queira, quer não, pertence à ordem dos incontornáveis. Não pode haver
melhor prova dele que a imagem da própria morte que temos diante
dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu lençol, e tendo na
orografia da sua óssea cara um ar de total desconcerto. Olha descon-
fiada o sobrescrito violeta, dá-lhe voltas para ver se nele encontra
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alguma das anotações que os carteiros devem escrever em casos seme-
lhantes, como sejam, recusado, mudou de residência, ausente em parte
incerta e por tempo indeterminado, falecido, Que estupidez a minha,