murmurou, como poderia ter falecido ele se a carta que o devia matar
voltou para trás. Tinha pensado as últimas palavras sem lhes dar maior
atenção, mas imediatamente as recuperou para repeti-las em voz alta,
com expressão sonhadora, Voltou para trás. Não é necessário ser-se
carteiro para saber que voltar para trás não é o mesmo que ser
devolvido, que voltar para trás poderá estar a dizer unicamente que a
carta de cor violeta não chegou ao seu destino, que num ponto qualquer
do percurso algo lhe aconteceu que a fez desandar o caminho, voltar
para donde tinha vindo. ora, as cartas só podem ir aonde as levam, não
têm pernas nem asas, e, tanto quanto se sabe, não foram dotadas de
iniciativa própria, tivessem-na elas e apostamos que se recusariam a
levar as notícias terríveis de que tantas vezes têm de ser portadoras.
Como esta minha, admitiu a morte com imparcialidade, informar
alguém de que vai morrer numa data precisa é a pior das notícias, é
como estar no corredor da morte há uma quantidade de anos e de
repente vem o carcereiro e diz, Aqui tens a carta, prepara-te. o curioso
do assunto é que todas as restantes cartas da última expedição foram
entregues aos seus destinatários, e se esta o não foi, só poderá ter sido
por qualquer fortuita casualidade, pois assim como tem havido casos de
uma missiva de amor ter levado, só deus sabe com que consequências,
cinco anos a chegar a um destinatário que residia a dois quarteirões de
distância, menos de um quarto de hora andando, também poderia
suceder que esta tivesse passado de uma cinta transportadora a outra
sem que ninguém se apercebesse e depois regressasse ao ponto de
partida como quem, tendo-se perdido no deserto, não tem nada mais
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em que confiar que o rasto deixado atrás de si. A solução será enviá-la
outra vez, disse a morte à gadanha que estava ao lado, encostada à
parede branca. Não se espera que uma gadanha responda, e esta não
fugiu à norma. A morte prosseguiu, se te tivesse mandado a ti, com esse
teu gosto pelos métodos expeditivos, a questão já estaria resolvida, mas
os tempos mudaram muito ultimamente, há que actualizar os meios e
os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias, por exemplo, utilizar o
correio electrónico, tenho ouvido dizer que é o que há de mais higié-
nico, que não deixa cair borrões nem mancha os dedos, além disso é
rápido, no mesmo instante em que a pessoa abre o outlook express da
microsoft já está filada, o inconveniente seria obrigar-me a trabalhar
com dois arquivos separados, o daqueles que utilizam computador e o
dos que não o utilizam, de qualquer maneira temos muito tempo para
decidir, estão sempre a aparecer novos modelos, novos designs, tecno-
logias cada vez mais aperfeiçoadas, talvez um dia me resolva a
experimentar, até lá continuarei a escrever com caneta, papel e tinta,
tem o charme da tradição, e a tradição pesa muito nisto de morrer.
A morte olhou fixamente o sobrescrito de cor violeta, fez um gesto
com a mão direita, e a carta desapareceu. Ficámos assim a saber que,
contrariamente ao que tantos criam, a morte não leva as cartas ao
correio.
Sobre a mesa há uma lista de duzentos e noventa e oito nomes, algo
menos que a média do costume, cento e cinquenta e dois homens e
cento e quarenta e seis mulheres, um número igual de sobrescritos e de
folhas de papel de cor violeta destinados à próxima operação postal, ou
falecimento-pelo-correio. A morte acrescentou à lista o nome da pessoa
a quem se dirigia a carta que tinha regressado à procedência, sublinhou
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as palavras e pousou a caneta no porta-penas. se tivesse nervos, pode-
ríamos dizer que se encontra ligeiramente excitada, e não sem motivo.
Havia vivido demasiado para considerar a devolução da carta como um
episódio sem importância. Compreende-se facilmente, um pouco de
imaginação bastará, que o posto de trabalho da morte seja porventura o
mais monótono de todos quantos foram criados desde que, por
exclusiva culpa de deus, caim matou a abel. Depois de tão deplorável
acontecimento, que logo no princípio do mundo veio mostrar como é
difícil viver em família, e até aos nossos dias, a cousa tinha vindo por aí
fora, séculos, séculos e mais séculos, repetitiva, sem pausa, sem
interrupções, sem soluções de continuidade, diferente nas múltiplas
formas de passar da vida à não-vida, mas no fundo sempre igual a si
mesma porque sempre igual foi também o resultado. Na verdade,
nunca se viu que não morresse quem tivesse de morrer. E agora,
insolitamente, um aviso assinado pela morte, de seu próprio punho e
letra, um aviso em que se anunciava o irrevogável e improrrogável fim
de uma pessoa, tinha sido devolvido à origem, a esta sala fria onde a
autora e signatária da carta, sentada, envolta na melancólica mortalha
que é seu uniforme histórico, com o capuz pela cabeça, medita no
sucedido enquanto os ossos dos seus dedos, ou os seus dedos de ossos,
tamborilam sobre o tampo da mesa. surpreende-se um pouco a desejar
que a carta outra vez enviada lhe venha novamente devolvida, que o
sobrescrito traga, por exemplo, a indicação de ausente em parte incerta,
porque isso, sim, seria uma absoluta surpresa para quem sempre
conseguiu descobrir onde nos havíamos escondido, se dessa infantil
maneira alguma vez julgámos poder escapar-lhe.
Não crê, porém, que a suposta ausência lhe apareça anotada no
reverso do sobrescrito, aqui os arquivos vão-se actualizando automa-
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ticamente a cada gesto e movimento que fazemos, a cada passo que
damos, mudança de casa, de estado, de profissão, de hábitos e costu-
mes, se fumamos ou não fumamos, se comemos muito, ou pouco, ou
nada, se somos activos ou indolentes, se temos dor de cabeça ou azia de
estômago, se sofremos de prisão de ventre ou diarreia, se nos cai o
cabelo ou nos tocou o cancro, se sim, se não, se talvez, bastará abrir o
gavetão do ficheiro alfabético, procurar o correspondente verbete, e lá
está tudo. E não nos admiremos se, no preciso instante em que
estivéssemos a ler o nosso cadastro particular, nos aparecesse instanta-
neamente registado o choque da angústia que de súbito nos petrificou.
A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. se é
certo que nunca sorri, é só porque lhe faltam os lábios, e esta lição
anatómica nos diz que, ao contrário do que os vivos julgam, o sorriso
não é uma questão de dentes. Há quem diga, com humor menos
macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma espécie de
sorriso permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à vista é um
esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca,
e a boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente. Com um
breve suspiro, puxou para si uma folha de papel e começou a escrever a
primeira carta deste dia, Cara senhora, lamento comunicar-lhe que a
sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma
semana, desejo-lhe que aproveite o melhor que puder o tempo que lhe
resta, sua atenta servidora, morte. Duzentas e noventa e oito folhas,