duzentos e noventa e oito sobrescritos, duzentas e noventa e oito
descargas na lista, não se poderá dizer que um trabalho destes seja de
matar, mas a verdade é que a morte chegou ao fim exausta. Com o gesto
da mão direita que já lhe conhecemos fez desaparecer as duzentas e
noventa e oito cartas, depois, cruzando sobre a mesa os magros braços,
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deixou descair a cabeça sobre eles, não para dormir, porque morte não
dorme, mas para descansar. Quando meia hora mais tarde, já refeita da
fadiga, a levantou, a carta que havia sido devolvida à procedência e
outra vez enviada, estava novamente ali, diante das suas órbitas
atónitas e vazias.
Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa que a
viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida. Aqui a
tinha, e das melhores. A primeira devolução poderia ter sido resultado
de um simples acidente de percurso, um rodízio fora do eixo, um
problema de lubrificação, uma carta azul-celeste que tinha pressa de
chegar e se havia metido adiante, enfim, uma dessas cousas inesperadas
que se passam no interior das máquinas que, tal como sucede com o
corpo humano, deitam a perder os cálculos mais exactos. Já o caso da
segunda devolução era diferente, mostrava com toda a clareza que
havia um obstáculo em qualquer ponto do caminho que a deveria ter
levado à morada do destinatário e que, ao chocar contra ele, a carta
fazia ricochete e voltava para trás. No primeiro caso, dado que o retorno
se havia verificado no dia seguinte ao do envio, ainda se podia
considerar a hipótese de que o carteiro, não tendo encontrado a pessoa
a quem a carta deveria ser entregue, em lugar de a meter na caixa do
correio ou debaixo da porta, a fizera regressar ao remetente esque-
cendo-se de mencionar o motivo da devolução. seriam demasiados
condicionais, mas poderia ser uma boa explicação para o sucedido.
Agora o caso mudara de figura. Entre ir e vir, a carta não havia
demorado mais que meia hora, provavelmente muito menos, dado que
já se encontrava em cima da mesa quando a morte levantou a cabeça do
duro amparo dos antebraços, isto é, do cúbito e do rádio, que para isso
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mesmo é que são entrelaçados. uma força alheia, misteriosa,
incompreensível, parecia opor-se à morte da pessoa, apesar de a data da
sua defunção estar fixada, como para toda a gente, desde o próprio dia
do nascimento. É impossível, disse a morte à gadanha silenciosa,
ninguém no mundo ou fora dele teve alguma vez mais poder do que eu.
eu sou a morte, o resto é nada. Levantou-se da cadeira e foi ao ficheiro,
donde voltou com o verbete suspeito. Não havia qualquer dúvida, o
nome conferia com o do sobrescrito, a morada também, a profissão era a
de violoncelista, o estado civil em branco, sinal de que não era casado,
nem viúvo, nem divorciado, porque nos ficheiros da morte nunca
consta o estado de solteiro, baste pensar-se no estúpido que seria nascer
uma criança, fazer-se-lhe a ficha e escrever, não a profissão, porque ela
ainda não saberá qual vai ser a sua vocação, mas que o estado civil do
recém-nascido é o de solteiro. Quanto à idade inscrita no verbete que a
morte tem na mão, vê-se que o violoncelista tem quarenta e nove anos.
ora, se ainda é necessária uma prova do funcionamento impecável dos
arquivos da morte, agora mesmo a vamos ter, quando, numa décima de
segundo, ou ainda menos, perante os nossos olhos incrédulos, o
número quarenta e nove for substituído por cinquenta. Hoje é o dia do
aniversário do violoncelista titular do verbete, flores lhe deveriam ter
sido enviadas em vez de um anúncio de falecimento daqui a oito dias.
A morte levantou-se novamente, deu umas quantas voltas à sala, por
duas vezes parou onde se encontrava a gadanha, abriu a boca como
para falar com ela, pedir-lhe uma opinião, dar-lhe uma ordem, ou
simplesmente dizer que se sentia confusa, desconcertada, o que,
recordemo-lo, não é nada de estranhar se pensarmos no tempo que já
leva neste ofício sem haver sofrido, até hoje, a menor falta de respeito
do rebanho humano de que é soberana pastora. Foi neste momento que
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a morte teve o funesto pressentimento de que o acidente poderia ter
sido ainda mais grave do que primeiramente lhe havia parecido.
sentou-se à mesa e começou a consultar de diante para trás as listas
mortuárias dos últimos oito dias. Logo na primeira relação de nomes, a
de ontem, e ao contrário do que esperava, viu que não constava o do
violoncelista. Continuou a folhear, uma, outra, outra, mais outra, mais
outra ainda, e só na oitava lista, enfim, o foi encontrar. Erradamente
havia pensado que o nome deveria estar na lista de ontem, e agora via-
se perante o escândalo inaudito de que alguém que já deveria estar
morto há dois dias continuava vivo. E isso não era o principal. o diabo
do violoncelista, que desde que tinha nascido estava assinalado para
morrer novo, com apenas quarenta e nove primaveras, acabara de
perfazer descaradamente os cinquenta, desacreditando assim o destino,
a fatalidade, a sorte, o horóscopo, o fado e todas as demais potências
que se dedicam a contrariar por todos os meios dignos e indignos a
nossa humaníssima vontade de viver. Era realmente um descrédito
total. E agora como vou eu rectificar um desvio que não podia ter
sucedido, se um caso assim não tem precedentes, se nada de semelhante
está previsto nos regulamentos, perguntava-se a morte, sobretudo
porque era com quarenta e nove anos que ele deveria ter morrido e não
com os cinquenta que já tem. Via-se que a pobre morte estava perplexa,
desconcertada, que pouco lhe faltava para começar a dar com a cabeça
nas paredes de pura aflição. Em tantos milhares de séculos de contínua
actividade nunca havia tido uma falha operacional, e agora, precisa-
mente quando tinha introduzido algo de novo na relação clássica dos
mortais com a sua autêntica e única causa mortis, eis que a sua
reputação, tão trabalhosamente conquistada, acabava de sofrer o mais
duro dos golpes. Que fazer, perguntou, imaginemos que o facto de ele
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não ter morrido quando devia o colocou fora da minha alçada, como
vou eu descalçar esta bota. olhou a gadanha, companheira de tantas
aventuras e massacres, mas ela fez-se desentendida, nunca respondia, e
agora, de todo ausente, como se se tivesse enjoado do mundo, descan-
sava a lâmina desgastada e ferrugenta contra a parede branca. Foi então
que a morte deu à luz a sua grande ideia, Costuma-se dizer que não há
uma sem duas, nem duas sem três, e que às três é de vez porque foi a
conta que deus fez, vejamos se realmente é como dizem. Fez o gesto de
despedida com a mão direita e a carta duas vezes devolvida tornou a
desaparecer. Nem dois minutos andou por fora. Ali estava, no mesmo
lugar que antes. o carteiro não a metera debaixo da porta, não tocara a
campainha, mas ela ali estava.
Evidentemente não há que ter pena da morte. Inúmeras e justificadas
têm sido as nossas queixas para que nos deixemos cair agora em
sentimentos de piedade que em nenhum momento do passado ela teve