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entretanto saberá quem é esse homem a quem os avisos de morte não

lograram alcançar, que poderes tem, se é esse o caso, ou se, como um

idiota inocente, continua a viver sem que lhe passe pela cabeça que já

deveria estar morto. Aqui encerrados, nesta fria sala sem janelas e com

uma porta estreita que não se sabe para que servirá, não tínhamos dado

por quão rápido passa o tempo. são três horas dadas da madrugada, a

morte já deve estar em casa do violoncelista.

Assim é. um das cousas que sempre mais fatigam a morte é o esforço

que tem de fazer sobre si mesma quando não quer ver tudo aquilo que

em todos os lugares, simultaneamente, se lhe apresenta diante dos

olhos. Também neste particular se parece muito a deus. Vejamos.

Embora, em realidade, o facto não se inclua entre os dados verificáveis

da experiência sensorial humana, fomos habituados a crer, desde

crianças, que deus e a morte, essas eminências supremas, estão ao

mesmo tempo em toda a parte, isto é, são omnipresentes, palavra, como

tantas outras, mestiça de latim e grego. Em verdade, porém, é bem

possível que, ao pensá-lo, e talvez mais ainda quando o expressamos,

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considerando a ligeireza com que as palavras nos costumam sair da

boca para fora, não tenhamos uma clara consciência do que isso poderá

significar. É fácil dizer que deus está em toda a parte e que a morte em

toda a parte está, mas pelos vistos não reparamos que, se realmente

estão em toda a parte, então por força, em todas as infinitas partes em

que se encontrem, em toda a parte vêem tudo quanto lá houver para

ver. De deus, que por obrigações de cargo está ao mesmo tempo no

universo todo, porque de outro modo não teria qualquer sentido havê-

lo criado, seria uma ridícula pretensão esperar que mostrasse um

interesse especial pelo que acontece no pequeno planeta terra, o qual,

aliás, e isto talvez a ninguém tenha ocorrido, é por ele conhecido sob

um nome completamente diferente, mas a morte, esta morte que, como

já havíamos dito páginas atrás, está adstrita à espécie humana com

carácter de exclusividade, não nos tira os olhos de cima nem por um

minuto, a tal ponto que até mesmo aqueles que por enquanto ainda não

vão morrer sentem que constantemente o seu olhar os persegue. Por

aqui se poderá ter uma ideia do esforço hercúleo que a morte foi

obrigada a fazer nas raras vezes em que, por esta ou aquela razão, ao

longo da nossa história comum, necessitou rebaixar a sua capacidade

perceptiva à altura dos seres humanos, isto é, ver cada cousa de sua vez,

estar em cada momento em um só lugar. No caso concreto que hoje nos

ocupa não é outra a explicação de por que ainda não conseguiu passar

da entrada da casa do violoncelista. A cada passo que vai dando, se lhe

chamamos passo é apenas para ajudar a imaginação de quem nos leia,

não porque ela efectivamente se movimente como se dispusesse de

pernas e pés, a morte tem de pelejar muito para reprimir a tendência

expansiva que é inerente à sua natureza, a qual, se deixada em

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liberdade, faria logo estalar e dispersar-se no espaço a precária e

instável unidade que é a sua, com tanto custo agregada.

A distribuição das divisões do apartamento onde vive o violoncelista

que não recebeu a carta de cor violeta pertence ao tipo económico

remediado, portanto mais própria de um pequeno burguês sem

horizontes que de um discípulo de euterpe. Entra-se por um corredor

onde no escuro mal se distinguem cinco portas, uma ao fundo, que,

para não termos de voltar ao assunto, fica já dito que dá acesso ao

quarto de banho, e duas de cada lado. A primeira à mão esquerda, por

onde a morte decide começar a inspecção, abre para uma pequena sala

de jantar com sinais de ser pouco usada, a qual, por sua vez, comunica

com uma cozinha ainda mais pequena, equipada com o essencial. Por aí

se sai novamente ao corredor, mesmo em frente de uma porta em que a

morte não necessitou tocar para saber que se encontra fora de serviço,

isto é, nem abre, nem fecha, modo de dizer contrário à simples demons-

tração, pois uma porta da qual se diz que não abre nem fecha, é

unicamente uma porta fechada que não se pode abrir, ou, como

também é costume dizer-se, uma porta que foi condenada. Claro que a

morte poderia atravessá-la e ao mais que por trás dela estivesse, mas se

lhe havia custado tanto trabalho a agregar-se e definir-se, embora

continue invisível a olhos vulgares, numa forma mais ou menos

humana, se bem que, como dissemos antes, não ao ponto de ter pernas e

pés, não foi para correr agora o risco de se relaxar e dispersar no interior

da madeira de uma porta ou de um armário com roupa que

seguramente estará do outro lado. A morte seguiu pois pelo corredor

até à primeira porta à direita de quem entra e por aí passou à sala de

música, que outro nome não se vê que deva ser dado à divisão de uma

casa onde se encontra um piano aberto e um violoncelo, um atril com as

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três peças da fantasia opus setenta e três de robert schumann, conforme

a morte pôde ler graças a um candeeiro de iluminação pública cuja

esmaecida luz alaran-jada entrava pelas duas janelas, e também

algumas pilhas de cadernos aqui e além, sem esquecer as altas estantes

de livros onde a literatura tem todo o arde conviver com a música na

mais perfeita harmonia, que hoje é a ciência dos acordes depois de ter

sido a filha de ares e afrodite. A morte afagou as cordas do violoncelo,

passou suavemente as pontas dos dedos pelas teclas do piano, mas só

ela podia ter distinguido o som dos instrumentos, um longo e grave

queixume primeiro, um breve gorjeio de pássaro depois, ambos

inaudíveis para ouvidos humanos, mas claros e precisos para quem

desde há tanto tempo tinha aprendido a interpretar o sentido dos

suspiros. Ali, no quarto ao lado, será onde o homem dorme. A porta

está aberta, a penumbra, não obstante ser mais profunda que a da sala

de música, deixa ver uma cama e o vulto de alguém deitado. A morte

avança, cruza o umbral, mas detém-se, indecisa, ao sentir a presença de

dois seres vivos no quarto. Conhe-cedora de certos factos da vida,

embora, como é natural, não por expe-riência própria, a morte pensou

que o homem tivesse companhia, que ao seu lado estaria dormindo

outra pessoa, alguém a quem ela ainda não havia enviado a carta de cor

violeta, mas que nesta casa partilhava o conchego dos mesmos lençóis e

o calor da mesma manta. Aproximou-se mais, quase a roçar, se tal cousa

se pode dizer, a mesa-de-cabeceira, e viu que o homem estava só.

Porém, do outro lado da cama, enroscado sobre o tapete como um

novelo, dormia um cão mediano de tamanho, de pêlo escuro,

provavelmente negro. Ao menos que se lembrasse, foi esta a primeira

vez que a morte se surpreendeu a pensar que, não servindo ela senão

para a morte de seres humanos, aquele animal se encontrava fora do

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alcance da sua simbólica gadanha, que o seu poder não poderia tocar-

lhe nem sequer ao deteve, e por isso aquele cão adormecido também se

tornaria imortal, logo se haveria de ver por quanto tempo, se a sua