própria morte, a outra, a que se encarrega dos outros seres vivos,
animais e vegetais, se ausentasse como esta o tinha feito e, portanto,
alguém tivesse um bom motivo para escrever no limiar de outro livro
No dia seguinte nenhum cão morreu.
o homem moveu-se, talvez sonhasse, talvez continuasse a tocar as
três peças de schumann e lhe tivesse saído uma nota falsa, um
violoncelo não é como um piano, o piano tem as notas sempre nos
mesmos sítios, debaixo de cada tecla, ao passo que o violoncelo as
dispersa a todo o comprido das cordas, é preciso ir lá buscá-las, fixá-las,
acertar no ponto exacto, mover o arco com ajusta inclinação e com a
justa pressão, nada mais fácil, por conseguinte, que errar uma ou duas
notas quando se está a dormir. A morte inclinou-se para a frente para
ver melhor a cara do homem, e nesse momento passou-lhe pela cabeça
uma ideia absolutamente genial, pensou que os verbetes do seu arquivo
deveriam ter colada a fotografia das pessoas a quem dizem respeito,
não uma fotografia qualquer, mas uma cientificamente tão avançada
que, da mesma maneira que os dados da existência dessas pessoas vão
sendo contínua e automaticamente actualizados nos respectivos
verbetes, também a imagem delas iria mudando com a passagem do
tempo, desde a criança enrugada e vermelha nos braços da mãe até este
dia de hoje, quando nos perguntamos se somos realmente aqueles que
fomos, ou se algum génio da lâmpada não nos irá substituindo por
outra pessoa a cada hora que passa. o homem tornou a mover-se, parece
que vai despertar, mas não, a respiração retomou a cadência normal, as
mesmas treze vezes por minuto, a mão esquerda repousa-lhe sobre o
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coração como se estivesse à escuta das pulsações, uma nota aberta para
a diástole, uma nota fechada para a sístole, enquanto a mão direita, com
a palma para cima e os dedos ligeiramente curvados, parece estar à
espera de que outra mão venha cruzar-se nela. o homem mostra um ar
de mais velho que os cinquenta anos que já cumpriu, talvez não mais
velho, apenas estará cansado, e porventura triste, mas isso só o pode-
remos saber quando abrir os olhos. Não tem os cabelos todos, e muitos
dos que ainda lhe restam já estão brancos. É um homem qualquer, nem
feio nem bonito. Assim como o estamos a ver agora, deitado de costas,
com o seu casaco do pijama às riscas que a dobra do lençol não cobre
por completo, ninguém diria que é o primeiro violoncelista de uma
orquestra sinfónica da cidade, que a sua vida discorre por entre as
linhas mágicas do pentagrama, quem sabe se à procura também do
coração profundo da música, pausa, som, sístole, diástole. Ainda
ressentida pela falha nos sistemas de comunicação do estado, mas sem a
irritação que experimentava quando para aqui vinha, a morte olha a
cara adormecida e pensa vagamente que este homem já deveria estar
morto, que este brando respirar, inspirando, expirando, já deveria ter
cessado, que o coração que a mão esquerda protege já teria de estar
parado e vazio, suspenso para sempre na última contracção. Veio para
ver este homem, e agora já o viu, não há nele nada de especial que possa
explicar as três devoluções da carta de cor violeta, o melhor que terá a
fazer depois disto é regressar à fria sala subterrânea donde veio e
descobrir a maneira de acabar de vez com o maldito acaso que tornou
este serrador de violoncelos em sobrevivente de si mesmo. Foi para
esporear a sua própria e já declinante contrariedade que a morte usou
estas duas agressivas parelhas de palavras, maldito acaso, serrador de
violoncelos, mas os resultados não estiveram à altura do propósito. O
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homem que dorme não tem nenhuma culpa do que sucedeu com a carta
de cor violeta, nem por remotas sombras poderia imaginar que está a
viver uma vida que já não deveria ser sua, que se as cousas fossem
como deveriam ser já estaria enterrado há pelo menos oito dias, e que o
cão negro andaria agora a correr a cidade como louco à procura do
dono, ou estaria sentado, sem comer nem beber, à entrada do prédios
esperando a volta dele. Por um instante a morte soltou-se a si mesma,
expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como
um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o
caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis
opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em
cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia
sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da
alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então
aconteceu algo nunca visto, algo não imagináVel, a morte deixou-se cair
de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha
joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos
se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não
será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de
lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como
estava, nem visível, nem invisível, nem esqueleto, nem mulher,
levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto. O homem não
se tinha mexido. A morte pensou, Já não tenho nada que fazer aqui,
vou-me embora, nem valia a pena ter vindo só para ver um homem e
um cão a dormirem, talvez estejam a sonhar um com o outro, o homem
com o cão, o cão com o homem, o cão a sonhar que já é manhã e que
está a pousar a cabeça ao lado da cabeça do homem, o homem a sonhar
que já é manhã e que o seu braço esquerdo cinge o corpo quente e
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macio do cão e o aperta contra o peito. Ao lado do guarda-roupa
encostado a porta que daria acesso ao corredor está um sofá pequeno
onde a morte se foi sentar.
Não o havia decidido, mas foi-se sentar ali, naquele canto, talvez por
se ter lembrado do frio que a esta hora fazia na sala subterrânea dos
arquivos. Tem os olhos à altura da cabeça do homem, distingue-lhe o
perfil nitidamente desenhado sobre o fundo de vaga luminosidade
laranja que entra pela janela e repete consigo mesma que não há
nenhum motivo razoável para que continue ali, mas imediatamente
argumenta que sim, que há um motivo, e forte, porque esta é a única
casa da cidade, do país, do mundo inteiro, em que existe uma pessoa
que está a infringir a mais severa das leis da natureza, essa que tanto
impõe a vida como a morte, que não te perguntou se querias viver, que
não te perguntara se queres morrer.
Este homem está morto, pensou, todo aquele que tiver de morrer já
vem morto de antes, só precisa que eu o empurre de leve com o polegar
ou lhe mande a carta de cor violeta que não se pode recusar. Este
homem não está morto, pensou, despertará daqui a poucas horas,
levantar-se-á como todos os outros dias, abrirá a porta do quintal para
que o cão se vá livrar do que lhe sobra no corpo, tomará a refeição da
manhã, entrará no quarto de banho donde sairá aliviado, lavado e
barbeado, talvez vá à rua levando o cão para comprarem juntos o jornal
no quiosque da esquina, talvez se sente diante do atril e toque unia vez
mais as três peças de schumann, talvez depois pense na morte como é