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morreste, não é crível, repetimos, que um sistema assim seja primitivo e

unidireccional, que a fonte informativa, lá onde quer que se encontre,

não esteja continuamente recebendo, por sua vez, os dados resultantes

das actividades quotidianas da morte em funções. E, se efectivamente

os recebe e não reage à extraordinária notícia de que alguém não

morreu quando devia, então uma de duas, ou o episódio, contra as

nossas lógicas e naturais expectativas, não lhe interessa e portanto não

se sente com a obrigação de intervir para neutralizar a perturbação

surgida no processo, ou então subentender-se-á que a morte, ao

contrário do que ela própria pensava, tem carta branca para resolver,

como bem entender, qualquer problema que lhe surgir no seu dia-a-dia

de trabalho. Foi necessário que esta palavra dúvida tivesse sido dita

aqui uma e duas vezes para que na memória da morte ecoasse

finalmente uma certa passagem do regulamento que, por estar escrita

em letra pequena e em rodapé, não atraía a atenção do estudioso e

muito menos a fixava. Largando o verbete do violoncelista, a morte

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deitou mão ao livro. sabia que aquilo que procurava não era nos

apêndices nem nas adendas que se encontrava, que teria de estar na

parte inicial do regulamento, a mais antiga, e portanto a menos

consultada, como em geral sucede aos textos históricos básicos, e ali foi

dar com ela. Rezava assim, Em caso de dúvida, a morte em funções

deverá, no mais curto prazo possível, tomar as medidas que a sua

experiência lhe vier a aconselhar a fim de que seja irremissivelmente

cumprido o desideratum que em toda e qualquer circunstância sempre

deverá orientar as suas acções. Isto é, pôr termo às vidas humanas

quando se lhes extinguir o tempo que lhes havia sido prescrito ao

nascer, ainda que para esse efeito se torne necessário recorrer a métodos

menos ortodoxos em situações de uma anormal resistência do sujeito ao

fatal desígnio ou da ocorrência de factores anómalos obviamente

imprevisíveis na época em que este regulamento está a ser elaborado.

Mais claro, água. a morte tem as mãos livres para agir como melhor lhe

parecer. o que, assim o mostra o exame a que procedemos, não era

nenhuma novidade. E, se não, vejamos. Quando a morte, por sua conta

e risco, decidiu suspender a sua actividade a partir do dia um de janeiro

deste ano, não lhe passou pela oca cabeça a ideia de que uma instância

superior da hierarquia poderia pedir-lhe contas do bizarro despautério,

como igualmente não pensou na altíssima probabilidade de que a sua

pinturesca invenção das cartas de cor violeta fosse vista com maus

olhos pela referida instância ou outra mais acima. são estes os perigos

do automatismo das práticas, da rotina embaladora, da práxis cansada.

uma pessoa, ou a morte, para o caso tanto faz, vai cumprindo escrupu-

losamente o seu trabalho, um dia atrás de outro dia, sem problemas,

sem dúvidas, pondo toda a sua atenção em seguir as pautas superior-

mente estabelecidas, e se, ao cabo de um tempo, ninguém lhe aparece a

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meter o nariz na maneira como desempenha as suas obrigações, é certo

e sabido que essa pessoa, e assim sucedeu também à morte, acabará por

comportar-se, sem que de tal se aperceba, como se fosse rainha e

senhora do que faz, e não só isso, também de quando e de como o deve

fazer. Esta é a única explicação razoável de porquê à morte não lhe

pareceu necessário pedir autorização à hierarquia quando tomou e pôs

em execução as transcendentes decisões que conhecemos e sem as quais

este relato, feliz ou infelizmente, não poderia ter existido. E que nem

sequer nisso pensou. E agora, paradoxalmente, é no justo momento em

que não cabe em si de contentamento por descobrir que o poder de

dispor das vidas humanas é, afinal, unicamente seu e de que dele não

terá que dar satisfações a ninguém. nem hoje nem nunca, é quando os

fumos da glória ameaçam entontecê-la, que não consegue evitar aquela

receosa reflexão de uma pessoa que, mesmo a ponto de ser apanhada

em falta, milagrosamente havia escapado no último instante, Do que eu

me livrei.

Apesar de tudo, a morte que agora se está levantando da cadeira é

uma imperatriz. Não deveria estar nesta gelada sala subterrânea, como

se fosse uma enterrada viva, mas sim no cimo da mais alta montanha

presidindo aos destinos do mundo, olhando com benevolência o

rebanho humano, vendo como ele se move e agita em todas as direcções

sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo

atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é

igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de

ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável

humanidade. A morte segura na mão o verbete do músico. Está ciente

de que terá de fazer alguma cousa com ele, mas ainda não sabe bem o

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quê. Em primeiro lugar deverá acalmar-se, pensar que não é agora mais

morte do que era antes, que a única diferença entre hoje e ontem é ter

maior certeza de o ser. Em segundo lugar, o facto de finalmente poder

ajustar as suas contas com o violoncelista não é motivo para se esquecer

de enviar as cartas do dia. Pensou-o e instantaneamente duzentos e

oitenta e quatro verbetes apareceram em cima da mesa, metade eram

homens. metade eram mulheres, e com eles duzentas e oitenta e quatro

folhas de papel e duzentos e oitenta e quatro sobrescritos. A morte

voltou a sentar-se, pôs de lado o verbete do músico e começou a escre-

ver. uma ampulheta de quatro horas teria deixado cair o derradeiro

grão de areia precisamente quando ela acabou de assinar a ducentésima

octogésima quarta carta. Uma hora depois os sobrescritos estavam

fechados. prontos para a expedição. A morte foi buscar a carta que três

vezes havia sido enviada e três vezes havia vindo devolvida e colocou-a

sobre a pilha dos sobrescritos de cor violeta, Vou dar-te uma última

oportunidade, disse. Fez o gesto do costume com a mão esquerda e as

cartas desapareceram. Ainda dez segundos não tinham passado quando

a carta do músico, silenciosamente, reapareceu em cima da mesa. Então

a morte disse, Assim o quiseste, assim o terás.

Riscou no verbete a data de nascimento e passou-a para um ano

depois, a seguir emendou a idade, onde estava escrito cinquenta

corrigiu para quarenta e nove. Não podes fazer isso, disse de lá a

gadanha, Já está feito, Haverá consequências, uma só, Qual, A morte,

enfim, do maldito violoncelista que se anda a divertir à minha custa,

Mas ele, coitado, ignora que já tinha de estar morto, Para mim é como se

o soubesse, seja como for, não tens poder nem autoridade para emendar

um verbete, Enganas-te, tenho todos os poderes e toda a autoridade,

sou a morte, e toma nota de que nunca o fui tanto como a partir deste

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dia, Não sabes no que te vais meter, avisou a gadanha, Em todo o

mundo há um só lugar onde a morte não se pode meter, Que lugar, Esse

a que chamam urna, caixão, tumba, ataúde, féretro, esquife, aí não entro

eu, aí só os vivos entram, depois de que eu os mate, claro, Tantas

palavras para uma só e triste cousa, É o costume desta gente, nunca