Выбрать главу

acabam de dizer o que querem.

A morte tem um plano. A mudança no ano de nascimento do músico

não foi senão o movimento inicial de uma operação em que, podemos

adiantá-lo desde já, serão empregados meios absolutamente excepcio-

nais, jamais usados em toda a história das relações da espécie humana

com a sua figadal inimiga. Como num jogo de xadrez, a morte avançou

a rainha. uns quantos lances mais deverão abrir caminho ao xeque-mate

e a partida terminará.

Poder-se-á agora perguntar por que não regressa a morte ao statu

quo ante, quando as pessoas morriam simplesmente porque tinham de

morrer, sem precisarem de esperar que o carteiro lhes trouxesse uma

carta de cor violeta. A pergunta tem a sua lógica, mas a resposta não a

terá menos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma questão de pundonor,

de brio, de orgulho profissional, porquanto, aos olhos de toda a gente,

regressar a morte à inocência daqueles tempos seria o mesmo que

reconhecer a sua derrota. uma vez que o processo actualmente em vigor

é o das cartas de cor violeta, então terá de ser por via dele que o violon-

celista irá morrer. Bastará que nos imaginemos no lugar da morte para

compreendermos a bondade das suas razões. Claro que, como por

quatro vezes tivemos ocasião de ver, o magno problema de fazer chegar

a já cansada carta ao destinatário subsiste, e é aí que, para lograr o

almejado desiderato, entrarão em acção os meios excepcionais a que

163

aludimos acima. Não antecipemos, porém, os factos, observemos o que

a morte faz neste momento. A morte, neste preciso momento, não faz

nada mais do que aquilo que sempre fez, isto é, empregando uma

expressão corrente, anda por aí, embora, a falar verdade, fosse mais

exacto dizer que a morte está, não anda.

Ao mesmo tempo, e em toda aparte. Não necessita de correr atrás

das pessoas para as apanhar, sempre estará onde elas estiverem.

Agora, graças ao método do aviso por correspondência, poderia

deixar-se ficar tranquilamente na sala subterrânea e esperar que o

correio se encarregasse do trabalho, mas a sua natureza é mais forte,

precisa de se sentir livre, desafogada. Como já dizia o ditado antigo,

galinha do mato não quer capoeira. Em sentido figurado, portanto, a

morte anda no mato. Não tornará a cair na estupidez, ou na

indesculpável fraqueza, de reprimir o que em si há de melhor, a sua

ilimitada virtude expansiva, portanto não repetirá a penosa acção de se

concentrar e manter no último limiar do visível, sem passar para o outro

lado, como havia feito na noite passada, sabe deus com que custo,

durante as horas que permaneceu em casa do músico. Presente, como

temos dito mil e uma vezes, em toda a parte, está lá também. o cão

dorme no quintal, ao sol, esperando que o dono regresse ao lar. Não

sabe aonde ele foi nem o que foi fazer, e a ideia de lhe seguir o rasto, se

alguma vez o tentou, é algo em que já deixou de pensar, tantos e tão

desorientadores são os bons e maus cheiros de uma cidade capital.

Nunca pensamos que aquilo que os cães conhecem de nós são outras

cousas de que não fazemos a menor ideia. A morte, essa, sim, sabe que

o violoncelista está sentado no palco de um teatro, à direita do maestro,

no lugar que corresponde ao instrumento que toca, vê-o mover o arco

com a mão destra, vê a mão esquerda, esquerda mas não menos destra

164

que a outra, a subir e a descer ao longo das cordas, tal como ela própria

havia feito meio às escuras, apesar de nunca ter aprendido música, nem

sequer o mais elementar dos solfejos, o chamado três por quatro. o

maestro interrompeu o ensaio, repenicou a batuta na borda do atril para

um comentário e uma ordem, pretende que nesta passagem os violon-

celos, justamente os violoncelos, se façam ouvir sem parecer que soam,

uma espécie de charada acústica que os músicos dão mostras de haver

decifrado sem dificuldade, a arte é assim, tem cousas que parecem de

todo impossíveis ao profano e afinal de contas não o eram. A morte,

escusado será dizer, enche o teatro todo até ao alto, até às pinturas

alegóricas do tecto e ao imenso lustre agora apagado, mas o ponto de

vista que neste momento prefere é o de um camarote acima do nível do

palco, fronteiro, ainda que um pouco de esguelha, aos naipes de cordas

de tonalidade grave, às violas, que são os contraltos da família dos violi-

nos, aos violoncelos, que correspondem ao baixo, e aos contrabaixos,

que são os da voz grossa. Está ali sentada, numa estreita cadeira forrada

de veludo carmesim, e olha fixamente o primeiro violoncelista, esse a

quem viu dormir e que usa pijama às riscas, esse que tem um cão que a

estas horas dorme ao sol no quintal da casa, esperando o regresso do

dono. Aquele é o seu homem, um músico, nada mais que um músico,

como o são os quase cem homens e mulheres arrumados em semicírculo

diante do seu xamã privado, que é o maestro, e que um dia destes, em

uma qualquer semana, mês e ano futuros, receberão em casa a cartinha

de cor violeta e deixarão o lugar vazio, até que outro violinista, ou

flautista, ou trompetista, venha sentar-se na mesma cadeira, talvez já

com outro xamã a fazer gestos com o pauzinho para conjurar os sons, a

vida é uma orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um

paquete titanic que sempre se afunda e sempre volta à superfície, e é

165

então que a morte pensa que ficará sem ter que fazer se o barco

afundado não puder subir nunca mais cantando aquele evocativo canto

das águas escorrendo pelo costado, como deve ter sido, deslizando com

outra rumorosa suavidade pelo ondulante corpo da deusa, o de anfitrite

na hora única do seu nascimento, para a tornar naquela que rodeia os

mares, que esse é o significado do nome que lhe deram. A morte

pergunta-se onde estará agora anfitrite, a filha de nereu e de dóris, onde

estará o que, não tendo existido nunca na realidade, habitou não

obstante por um breve tempo a mente humana a fim de nela criar,

também por breve tempo, uma certa e particular maneira de dar sentido

ao mundo, de procurar entendimentos dessa mesma realidade. E não a

entenderam, pensou a morte, e não a podem entender por mais que

façam, porque na vida deles tudo é provisório, tudo precário, tudo

passa sem remédio, os deuses, os homens, o que foi, acabou já, o que é,

não será sempre. e até eu, morte, acabarei quando não tiver mais a

quem matar, seja à maneira clássica, seja por correspondência. sabemos

que não é a primeira vez que um pensamento destes passa pelo que

nela pensa, seja aquilo que for, mas foi a primeira vez que tê-lo pensado

lhe causou este sentimento de profundo alívio, como alguém que,

havendo terminado o seu trabalho, lentamente se recosta para

descansar. De súbito, a orquestra calou-se, apenas se ouve o som de um

violoncelo, chama-se a isto um solo, um modesto solo que não chegará a

durar nem dois minutos, é como se das forças que o xamã havia

invocado se tivesse erguido uma voz, falando porventura em nome de

todos aqueles que agora estão silenciosos, o próprio maestro está

imóvel, olha aquele músico que deixou aberto numa cadeira o caderno